“Isto é o início dos últimos dias. Isto é o apocalipse”
Nos 27 anos que se seguiram àquela capa da Time sobre o Ruanda, muitas foram as guerras e os massacres a que assisti. A maioria dessas tragédias aconteceu longe daqui. Tão longe que às vezes ficava com a sensação de que nem sequer estavam a acontecer a sério.
Aos 19 anos, era operário numa fábrica de agulhas. Trabalhava por turnos. Numa semana, entrava às sete e saía às 15h; na semana seguinte, entrava às 15h e saía à meia-noite. As notas no secundário não tinham sido famosas, pelo que não tinha conseguido média para ingressar no curso de comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Não fiquei muito ralado, confesso; não tinha assim tanta certeza de querer ser jornalista. E sabia-me bem ter um ordenado. Continuar a estudar significava “adiar a minha independência”, essa expressão tão utilizada pelos jovens naquela altura (acho que já não a oiço tanto agora, todos sabemos porquê…).
O tempo livre, numa semana de manhã, na outra de tarde, ocupava-o, normalmente, a trabalhar com um amigo que tinha uma empresa de reparação e montagem de estores. Era mais algum que entrava, mais algum que contribuía para “a minha independência”. Não havendo trabalho, ia praticar bodyboard, caminhar sem destino — sempre gostei de caminhar sem destino, fingindo que o caminho não tinha fim. Será que tem? — ou entretinha-me numa livraria perto de minha casa a folhear jornais e revistas.
Numa dessas digressões à papelaria, deparei-me, no estendal que o dono da papelaria colocava na entrada com as publicações que pretendia destacar, com uma edição da revista Time. Na capa, uma imagem de corpos amontoados junto à fronteira do Ruanda com o Zaire (atual República Democrática do Congo) e uma frase de um residente de Goma, onde se localizavam os campos de refugiados, que nunca esqueci: “This is the beginning of the final days. This is the apocalypse” (“Isto é o início dos últimos dias. Isto é o apocalipse”).
Comprei a revista — tenho a certeza de que ainda a tenho em casa dos meus pais num qualquer monte a que chamo arquivo sempre que a minha mãe me pergunta se conheço a prática da reciclagem — e corri para casa para a ler. Mais de 800 mil pessoas tinham sido mortas em apenas dez dias.
Decidi naquele instante que ia continuar a estudar e que queria mesmo ser jornalista para revelar as injustiças e os massacres que aconteciam no mundo. Ingressei no Curso de Comunicação Social na Universidade Católica, que completei em seis anos — não fui um aluno brilhante... — e entrei no mundo da comunicação social na área do desporto e, posteriormente, enveredei pela área dos automóveis. O sonho de denunciar crimes e massacres e injustiças nunca foi alcançado.
Nos 27 anos que se seguiram àquela capa da Time sobre o Ruanda, muitas foram as guerras e os massacres e atentados aos direitos humanos e os conflitos inexplicáveis a que assisti. A maioria dessas tragédias aconteceu longe daqui — em Timor, no Iraque, na Síria, no Afeganistão, em Israel, na Palestina, na República Democrática do Congo, na Bósnia e Herzegovina, na Sérvia, no Montenegro, no Kosovo, e tantos outros. Tão longe (muitas vezes, também com pouco mediatismo) que às vezes ficava com a sensação de que nem sequer estavam a acontecer a sério, como se fossem só encenações, filmes de Hollywood em que as pessoas que víamos nas imagens tinham ido para casa descansar depois das filmagens e que no dia seguinte antes de voltar às filmagens iam comprar pão para o pequeno almoço, tal qual como eu e as pessoas que se cruzavam comigo a caminho da padaria fazíamos aqui.
Ficava muitas vezes em silêncio a pensar em como a distância dos factos pode às vezes retirar gravidade às situações. Ou como a forma como nos eram apresentadas as imagens de massacres e guerras e de refugiados entre um bate-boca de baixo nível no nosso Parlamento e um resumo de um jogo de futebol fazia com que eu desvalorizasse as vidas que se perdiam, onde as pessoas choravam temendo por si e pelos seus filhos e pelos pais e irmãos e pelos vizinhos e conhecidos e compatriotas. “Que sorte que não é aqui”, pensava. Que me apedreje quem nunca pensou o mesmo. Pensamos sempre primeiro na nossa própria segurança e na daqueles que amamos.
Dia 25 de Fevereiro. Soam as sirenes em Kiev.
Mulheres e crianças correm a refugiar-se nas estações de metro e nos bunkers espalhados pela cidade. Os homens ficam lá fora, na guerra. Ouvem-se explosões ao fundo. Imagino que algumas mães dizem aos filhos que são trovões, que há uma trovoada lá fora e que não podem sair do buraco onde estão enfiados enquanto não passar. Dizem-no com um sorriso forçado, fingindo tranquilidade, fingindo que estão felizes e que aquilo é viver. Percebo-as. Era o que eu faria. Aquilo é viver, porque lá fora morre-se.
Por agora, tudo se resume a permanecer vivo. É essa aspiração que as alimenta enquanto revivem vidas passadas, pensam na morte e esperam. Fusão do sofrimento com a espera.
Soam as sirenes em Kiev.
Um povo dividido. Mães e filhos de um lado. Pais e filhos do outro. Um povo calado e escondido de um lado. Um povo ruidoso e exposto do outro, de arma na mão a aguardar os tanques do inimigo. Dirão uns e outros, apesar de tudo, que são felizes, pois lutam pela pátria. Renego ao meu sonho de ser o jornalista que revela as injustiças e os massacres que acontecem no mundo. Hoje, enquanto soam as sirenes num país europeu, tudo o que desejo é que não exista nada para revelar, a não ser paz.