Guerra na Ucrânia
Neste campo de treino militar para civis, “quem ensina é a extrema-direita”
“Com a nova agressão russa, o sentimento de defesa é grande e as pessoas estão cada vez mais fechadas e com ódio ao inimigo”, refere, em entrevista, o fotógrafo português Igor Aboim, que visitou um campo de treino militar para civis organizado por uma unidade militar de extrema-direita. “É muito fácil o nacionalismo ser confundido com orgulho no país e na sua defesa.”
Esta quarta-feira, 23 de Fevereiro, poucas horas antes do primeiro bombardeamento russo sobre a Ucrânia, o parlamento ucraniano aprovou a lei que permite que os cidadãos sejam portadores de armas de fogo e que possam disparar em situação de auto-defesa. Nas primeiras horas de 24 de Fevereiro, pouco tempo depois dos primeiros ataques russos, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenskii, declara a lei marcial no país e informa, via Twitter, que o seu Governo irá “fornecer armas a qualquer pessoa que queira defender o país”.
Foram muitos os cidadãos ucranianos apanhados de surpresa pelo ataque sincronizado a várias cidades do país orquestrado pelo exército do Kremlin. Milhões de ucranianos limitaram-se a reagir, enchendo despensas, levantando poupanças, recorrendo a abrigos ou fugindo dos centros urbanos e mesmo do país. Outros homens e mulheres, porém, já estavam preparados, treinados e devidamente equipados para enfrentar a agressão russa. Igor Aboim, fotógrafo português que esteve na Ucrânia entre os dias 2 e 16 de Fevereiro, conheceu alguns destes cidadãos num campo de treino militar para civis organizado pelo movimento de extrema-direita Azov, em Dnipro, a quarta maior cidade ucraniana.
Todos os soldados do antigo batalhão Azov, grupo paramilitar nascido em plena revolução da Maidan, que a Time apelidou, já em Janeiro de 2021, de “milícia supremacista branca”, servem hoje a guarda nacional ucraniana. “Não havia indicações de que o treino estava sob comando da extrema-direita”, ressalva Aboim, que só se apercebeu da orientação política do evento após a chegada ao local, a 13 de Fevereiro. O burburinho que se levantou à chegada de um dos líderes do grupo, Andriy Biletsky, denunciou a reverência que existe em seu torno. “Achei curioso ver todos os soldados mostrarem enorme respeito por ele”, nota o fotógrafo. Biletsky foi o primeiro comandante do batalhão Azov, co-fundador do movimento Assembleia Nacional-Socialista e líder do partido político de extrema-direita ucraniano Corpo Nacional, tendo chegado a ocupar o cargo de deputado no parlamento ucraniano entre 2014 e 2019.
“Com a nova agressão russa, o sentimento de defesa é grande, as pessoas estão cada vez mais fechadas e com ódio ao inimigo”, refere o fotógrafo. Aboim acredita que muitos dos participantes do treino militar que presenciou “não estivessem conscientes das intenções ideológicas do grupo”. “Muitos participantes estavam ali apenas e só como medida de precaução, ou por mera curiosidade”, reflecte, reconhecendo como “preocupante” a acção sub-reptícia da organização, que instila “retóricas racistas e xenófobas” numa população que vive um momento de grande vulnerabilidade. “Outros, claro, teriam conhecimento das insígnias e nutririam simpatia pelas ideias extremistas [da organização].”
Nas fotografias do português nem sempre é evidente quem é o instrutor e o instruendo, já que o uso de padrão camuflado é transversal. “Cerca de 20% são militares [do ex-batalhão Azov], 80% são civis”, ouviu Aboim no local. Algo que pode tornar clara a distinção é, no entanto, a idade de cada um dos presentes: “há crianças com dez anos e adultos com mais de 60”. A maioria rondaria os 20 anos. “Os mais jovens cresceram sob ameaça e medo, por isso querem estar preparados quando for a sua vez de defender a família”, discorre Aboim.
Apesar das diferenças, algo os une: “todos querem fazer frente à ameaça russa”. Os participantes desta primeira sessão de formação de 2022 em Dnipro foram divididos por grupos, de acordo com o grau de experiência. Os novatos treinaram posições de combate, aprenderam a segurar uma arma, a reconhecer os diferentes tipos de equipamento utilizado por militares russos. “Há ainda uma aula de primeiros socorros e uma breve introdução à ‘culinária de emergência’”, descreve o português. Os mais experientes, por sua vez, treinam pontaria utilizando diferentes tipos de armas.
“As pessoas estavam cautelosas”, descreve o fotógrafo. “Mas também optimistas.” Naquele domingo, 13 de Fevereiro, a ameaça russa não passava ainda disso mesmo: de uma ameaça. “O sentimento geral era de negação perante uma eventual invasão russa, muitos acreditavam numa escalada do conflito em Donbass, mas nunca numa guerra que marcasse o país inteiro.” Apesar disso, era muito claro, no local, que muitos dos participantes já tinham investido avultadamente em armas, coletes, munições. “O trauma provocado pela guerra, em 2014, ainda era muito palpável, ninguém queria uma repetição do cenário em que a Ucrânia estava mal preparada.”
Na Ucrânia do presente, as diferenças ideológicas e políticas tendem a esfumar-se diante de um inimigo comum. O ódio a Putin é agregador. “É muito fácil o nacionalismo extremo ser confundido com orgulho no país e na sua defesa”, argumenta Aboim. O ditado é antigo: “em tempo de guerra, não se limpam armas”. “Mesmo alguns militares fazem ‘vista grossa’ a tendências políticas extremas dos companheiros por acharem que o objectivo comum se sobrepõe às diferenças. Acabam por aceitá-las, optando por preferir dar corpo e volume à causa que defendem.”