Dany Wambire nasceu numa família sem livros e tornou-se livreiro
Escritor moçambicano convidado pelas Correntes d’Escritas fingiu que ia construir uma casa para obter empréstimo e editar o seu primeiro livro. Agora, além de escrever, é editor, livreiro e organiza dois festivais literários na cidade da Beira.
Este convidado moçambicano pelas Correntes d’Escritas, Dany Wambire, nasceu numa família que não tinha livros. Os primeiros de que se recorda de ler, depois da morte do pai, eram de “formação ideológica, de marxismo-leninismo”, conta a alunos do 6.ºA e do 6.ºF da Escola EB2/3 Aver-o-Mar. E prossegue: “Os únicos livros a que tive acesso e me construíram como pessoa foram os livros escolares. Continham textos de Angola, Moçambique, de Portugal, entre outras paragens.”
Vai descrevendo a sua vida como uma sucessão de acidentes, mas mesmo os momentos menos felizes são contados com bonomia, sorrisos e gargalhadas. “Como eu era órfão, a minha tia, que me criou, obrigou-me a fazer o Curso de Professores, mas eu não queria, queria ser agrónomo.” Acabou por fazer a vontade à tia e ir trabalhar para o distrito de Machanga (província de Sofala).
“Foi por acaso que me tornei escritor”, diz. “Como noutros lugares do mundo, ali havia a conjugação de vários conhecimentos. O científico, mas também o conhecimento ligado à teologia. Lá em Machanga, havia um conjunto de saberes com algum misticismo”, lembra, para depois esclarecer: “Sempre que houvesse problemas ou dificuldades, recorria-se a algum poder acima dos homens. Os homens, quando têm algumas faltas que não conseguem explicar, pensam sempre noutra força para tentar compreender. Aí, entra a religião.”
Nesta terra para onde Dany foi ensinar adultos, havia situações de seca. “Então, os homens tinham de invocar os falecidos, os antepassados, para os ajudar a que a chuva caísse.”
Outro problema eram as pragas de gafanhotos: “Havia muito milho, mas a praga de gafanhotos vai dando cabo do milho e a população adivinha que vai haver fome a seguir. E saíam as mulheres de peito nu a maldizer os homens, achando que elas é que estavam a trazer as pragas.”
Os alunos não conseguem deixar de se rir. Diz-lhes o escritor, que é também professor universitário de História: “Isto é estranho para vocês e para mim também, que fui educado num ambiente urbano. E ali encontro coisas como estas.” Foi para as compreender que usou a escrita: “Eu precisava de entender estas coisas para as tornar comuns para mim. Às vezes, é pela via da escrita que se entende o mundo. Estamos a converter o estranho em coisa comum, que se pode ler e entender.”
Foi registando estes episódios sempre sem pensar em ser escritor, mas, quando se deu conta, “já tinha sido assaltado pelo vírus da escrita”, diz bem-disposto. “Diagnóstico feito. Precisa de tratamento? Não. Na escrita, o tratamento é infectar-se cada vez mais.”
Relembra que passou a ter contactos com livros, autores e textos completos. Não apenas os excertos dos manuais escolares da infância. Conseguiu depois participar em colectâneas em Portugal, no Brasil, em Moçambique e noutras partes do mundo. Foi ganhando confiança. O primeiro estímulo foi a menção honrosa que lhe foi atribuída em Portugal no Prémio Internacional José Luís Peixoto, em 2013.
“Fiz uma loucura. Fui pedir dinheiro emprestado ao banco. Como era professor, disse que era para construir uma casa. Mas não. Peguei no dinheiro e fui editar o livro.” Gargalhada geral entre os miúdos.
Depois, era preciso vendê-lo. “Comecei a andar na rua como um comerciante informal a tentar vender o livro.” Foi o mais difícil. Alguns colegas da escola compraram, outros não. “Se até os professores não compram os livros, a coisa é mais profunda do que eu penso. Então decidi: havia uma geração perdida, que era a minha e dos meus colegas professores.” Resolveu então promover a leitura junto dos seus alunos, reunindo-os aos sábados para conversarem descontraidamente sobre livros. “Queria evitar forçar os alunos a ler. Quando se faz isso, o efeito é o contrário”, não tem dúvidas.
Assim decorriam as sessões: “Os miúdos traziam livros, liam, falavam sobre as facilidades e dificuldades de leitura, a graça do texto e, no final, fazíamos o que eles mais gostavam, que era declamar. E assim se apropriavam dos textos.” Para ele, “é nessa apropriação que os professores e mediadores de leitura podem ajudar a desvendar a beleza que há nos livros”.
A cultura só se enriquece se houver trocas
Foi a partir daí que surgiu a Associação Klemba, que organiza o Festival do Livro Infantil da Beira e o concurso de contos tradicionais. Nesse concurso, alunos das escolas primárias e do 5.º e 6.º anos recolhem as histórias dos familiares, pais e avós e, no final, passam para o papel, para serem publicadas. Já existem três colectâneas e espera-se que este ano saia outra.
Criaram também uma editora e, depois, uma livraria, que “é um espaço de troca de conhecimentos” pois chegam livros de vários pontos: Brasil, Japão, África do Sul, etc.. E conclui: “A cultura só se enriquece se houver trocas.”
Já para o final da sua apresentação, o livro de Dany Wambire Quem Manda na Selva foi o mote para mais um momento divertido para alunos e professores. À pergunta “quem manda na selva?”, a resposta unânime foi “o leão”. “Nãaa…”, reagiu o escritor, “não sei se é ele ou não, vou esconder…” Ainda assim desvenda um pouco: “Eu pensava que era o leão que mandava na selva até escrever este livro. Depois, fiquei a pensar que não. E ainda hoje não sei se ele sabe que é ele que manda.”
O livro resultou de um episódio engraçado decorrido numa visita ao Parque Nacional da Gorongosa. “O animal que nos perseguiu porque estávamos a invadir o habitat foi o elefante. Mas havia por lá um leão quietinho. Todas as vezes que eu passei pelo leão, não se mexeu. Pensei: será que é ele que manda? Até hoje tenho essa dúvida. Eu não quero ter resposta, mas quero problematizar as coisas que nos ensinam que são assim, de determinada maneira. A vida tem necessidades destas e outras perguntas.”
Lição final: “As representações sociais devem ser postas em causa. Podemos olhar o mundo de uma maneira hoje e de outra forma no dia seguinte. Isso é normal.” Para concluir, que “os livros e a arte nos ajudam a ser pessoas inconformadas”.
Depois de responder a várias perguntas, este activista cultural quer mostrar às crianças como “nem sempre acertamos nas nossas interpretações”. Conta então a história de um macaco que tira um peixe da água e o mantém nas mãos. Pergunta às crianças o que acham que acontece. Elas respondem que o peixe começa a saltar. Nova pergunta: e o que pensa o macaco? “Que ele vai morrer”, dizem os alunos. Mas não, o macaco pensa que ele está feliz porque foi salvo de ser afogado. Quando o peixe pára, o que pensa o macaco sobre o peixe? “Que está a dormir”, “que está morto” são as duas respostas da audiência. Na verdade, está morto, mas o macaco pensa que não conseguiu salvá-lo porque ele já tinha engolido… muita água.
A sessão foi partilhada com Mafalda Milhões, ilustradora, editora e livreira, no âmbito das actividades paralelas das Correntes d’Escritas, que integram visitas dos autores às escolas do concelho da Póvoa de Varzim. O encontro termina neste sábado.