“Como assim?” Uma pergunta simples de um extensíssimo alcance

As perguntas desbloqueiam o mundo. Mesmo nas situações em que primeiramente o bloqueiam.

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Adriano Miranda/Arquivo

“Muito raramente ouço as pessoas perguntar o que é que fizemos para tornar o coração de tantas crianças tão duro, ou o que poderíamos fazer em conjunto para corrigir a sua bússola moral – quais os valores pelos quais devemos reger-nos. Em vez disso, vejo-nos a fazer o que sempre fizemos – fingir que estas crianças não são, de alguma forma, as nossas.”
Barack Obama, Dreams from my father

No âmbito de uma reportagem sobre o estudante que planeava um ataque à Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa (FCUL), a RTP convidou a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos para dar o seu parecer sobre o caso. Depois de elaborar sobre o jovem em questão, a especialista estendeu a sua análise aos problemas que a pandemia e os confinamentos podem ter provocado ou exagerado nos jovens: “Devemos estar atentos a alguns sinais, a um jovem que se isola no quarto, que revela alguma impaciência e irritabilidade, que faz da noite dia e do dia noite. Contudo, não devemos ficar logo a pensar que se trata de algo muito negativo, porque na maior parte das vezes não é, mas pode ser um ponto de partida para nos alertar para a importância de restabelecer uma comunicação e de ter vontade de saber o que se passa com o jovem. Eu gosto muito de uma pergunta que uso quando um jovem diz qualquer coisa que eu não entendo bem: ‘Como assim?’ Esse ‘como assim?’ quer dizer ao jovem que eu não estou a condenar, apenas estou com muita curiosidade de saber o que se passa para o poder ajudar.”

“Como assim?” Uma pergunta simples de um extensíssimo alcance que nos alerta para a importância de fazer perguntas — certas ou erradas, úteis ou parecendo inúteis. As perguntas desbloqueiam o mundo. Mesmo nas situações em que primeiramente o bloqueiam. Divaguemos: quantos de nós não devemos a nossa existência a uma pergunta. Ou uma série delas, sequencialmente, até. “Vamos ao cinema?”, “posso dar-te a mão?”, “posso dar-te um beijo?”, “queres namorar comigo?”, “queres viver comigo?”, “queres casar comigo?”, “vamos fazer um bebé?”. E quem pode dizer que nunca experimentou, de ambas as faces da moeda, o célebre (e incómodo) “o que é que tens?” e ofereceu/recebeu um “nada” como resposta. Ou simplesmente um silêncio que tudo desvenda.

O “como assim?” enunciado pela pedopsiquiatra Ana Vasconcelos recordou-me um episódio que vivi há cerca de três anos, altura em que fazia parte da equipa técnica de uma equipa de futebol do escalão de iniciados.

Desde a minha integração na equipa que pedi aos jogadores, cujas idades variavam entre os 13 e os 14 anos, para me tratarem pelo nome e por tu. Fi-lo por achar que o respeito não se obtém por formalismos no trato e por, de certa forma, confesso, querer ser um deles e não uma figura que determinava exercícios e rotinas de treino. Certamente que, à luz de comprovadas doutrinas de ensino e de orientação de jovens, haverá opiniões contrárias a esta minha forma de funcionar, mas é assim que me sinto bem, sinto que estou a ser eu a 100%. E a verdade é que os miúdos depressa me acolheram e quase (reforce-se o quase) me tratavam como um deles, pese embora os trinta anos de diferença. Falavam-me de tudo. Aprendi tanto... Para mim, foi como se quatro vezes por semana, durante uma hora e meia, regressasse à adolescência, aquele período de tumulto, confusão e renascimento em que, ao mesmo tempo, somos criança e adulto e nenhuma das duas coisas, em que corpo cresce e muda quase de um dia para o outro, revelando uma química instável e apetites desconhecidos, em que as roupas mudam, assim como as atitudes, as expectativas, as exigências, as promessas, as cobranças.

Aos poucos, fui-me apercebendo da riqueza daquele espaço de observação sem condicionalismos, onde jovens em rédea solta, a serem o que eram enquanto praticavam uma actividade que adoravam, interpretavam os contextos de competitividade numa altura absolutamente crítica da sua existência.

Certo dia, A. pareceu-me estranho desde o momento em que me cumprimentou e mantive-me particularmente atento à sua conduta. Não lhe vi um sorriso ou o mínimo vislumbre de alegria durante uma hora e meia de treino. Isso não era habitual em A., um dos miúdos mais bem-dispostos e brincalhões da equipa. No final do treino, dirigi-me a ele e abracei-o. O abraço não teve rigorosamente nada a ver com o seu estado tristonho. Quando calhava, sem regras ou obrigações, despedia-me dos jogadores com um abraço (dos mais afectuosos, outros fugiam do contacto físico ou até de uma troca de olhares).

— Ora conta-me lá por que estás triste? — murmurei.

Assim, do nada (ou de tudo), a pergunta desbloqueou os soluços contidos e senti que chorava. Fiquei bastante surpreendido. A. era um dos elementos mais raçudos da equipa e consensualmente considerado pelos elementos da equipa técnica como um dos mais fortes psicologicamente — o que pode perfeitamente ser uma máscara, dizem os especialistas. Ainda assim, não pude deixar de ficar surpreendido quando senti os seus dedos cravados nas minhas costas. Não disse mais nada e dei-lhe algumas palmadinhas e afaguei-lhe a cabeça. Para evitar que os outros percebessem o que se passava, interrompi gentilmente o abraço e comecei a afastar-me, levando-o comigo debaixo do braço. Ele continuava a chorar, de olhos postos no chão. Ao fim de algum tempo, coloquei-me de frente para ele. A. parou de chorar e endireitou-se.

— A minha mãe foi injusta comigo, João —, disse, respondendo por fim à minha pergunta, de forma muito mais cristalina do que eu esperava. Os soluços ficaram dispersos no meu peito sob a forma de uma mancha lacrimal.

— Injusta, como?

— Disse que eu não dou valor ao que ela e o meu pai fazem por mim e que eu tenho tudo e que não aproveito as oportunidades que eles não tiveram.

Conversámos um pouco. Tentei ser imparcial, colocar-me no papel de ambos. Sou pai, mas também tenho uma memória muito vívida dos tempos de adolescente e das tais injustiças de que A. falava. E dos dramas que afinal não o são. Enfim, o assunto não era sério. Uma mãe que se zanga com um filho. Um filho que se sente injustiçado. Não é a justiça ou a injustiça que está aqui em causa. Os pais são muitas vezes injustos com os filhos. E os filhos com os pais. É normal, e não vem mal nenhum ao mundo por isso e, em circunstâncias normais, não corrói o amor de uns pelos outros. Nenhum mérito pretendo colher da situação. Fiz uma pergunta.

Calhou ter reparado que o rapaz estava esquisito face aos seus padrões normais e quis saber o que se passava. O que interessa é a pergunta, o desbloqueador. Renovámos o abraço na despedida, desta vez com sorrisos que indiciavam maior tranquilidade. Mais tarde, enviou-me uma mensagem, relatando o que se passara quando chegou a casa: «perguntei à minha mãe se se ainda estava zangada comigo e ela disse que sim e que era para o meu bem lol». Imaginei aquele “lol” a ser digitado ao som da sua gargalhada fácil e contagiante e percebi que já estava tudo bem.

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