O medo de ser contagiado infectou três gerações
Nunca, até agora, me passaria pela cabeça deixar de vos visitar porque há dois constipados e um com febre e dores de cabeça, mas neste momento dou por mim a pensar que independentemente de ser ou não covid, não me apetece ficar doente.
Ana,
Estou com saudades dos meus netos. Dos teus filhos e dos outros. Tenho-os visto muito menos e a culpa continua a ser da covid, só que agora parece tudo já muito conformado e isso preocupa-me.
Ou é porque apanharam, ou porque os pais apanharam, ou é porque estão com sintomas de alguma coisa e, pelo sim, pelo não, o melhor é não estarmos juntos, mas a verdade é que as semanas passam e os avós não lhes põem os olhos em cima. Não os apertam no colo, não lhes dão abraços e beijinhos despreocupados, ou se dão ficam depois à espreita do “castigo”, enquanto repetem para si mesmos o mantra das vacinas já tomadas. Como se fosse uma transgressão.
E os filhos e os netos preocupam-se, não querem ser eles os “culpados”, e asseguram os mais velhos que fizeram 20 autotestes, todos negativos, e que se por azar os avós ficarem doentes, a culpa não foi deles. Como se fosse possível estabelecer cadeias de contágio ou interessasse saber quem foi o mau da fita. O pior é que suspeito que esse medo de contagiar ou de ser contagiado veio para ficar. E infectou a cabeça de três gerações. Nunca, até agora, me passaria pela cabeça deixar de vos visitar porque há dois constipados e um com febre e dores de cabeça, mas neste momento dou por mim a pensar que independentemente de ser ou não covid, não me apetece ficar doente. Ou seja, tomamos mais consciência de que estas coisas todas se pegam, o que pode ter um lado bom, mas tem outro perverso, o de sentirmos que há inimigos por aí à solta. Basicamente “empoderámos” os vírus e as bactérias, passando a imaginá-los como inimigos de armadura vestida e lança na mão prontos a atacar-nos, esquecendo-nos que sempre cá estiveram, que partilham o nosso corpo e que, inclusivamente, fortalecem o nosso sistema imunitário.
Resumindo estou farta de estar sem eles, que crescem a olhos vistos e nós a perdermos tanto.
Ana, como é que damos a volta a isto?
Querida Mãe,
Também sinto que a vida está a passar e continuamos a viver num limbo frustrante. Como é que se dá a volta a isto? Com muita paciência e com a consciência de que:
1. Todos lidámos com a pandemia de forma diferente, e vamos também lidar com o regresso à normalidade cada um à nossa maneira.
Sabia que estudos preliminares revelam que as pessoas passaram a preocupar-se muito mais com a saúde. Parece óbvio, certo? Mas não é tão linear assim, porque aqueles que já sofriam de Perturbação Obsessiva Compulsiva sentiram-se (de acordo com o estudo) melhores, com níveis mais baixos de ansiedade já que, por um lado, estavam habituadas a viver com o medo da contaminação, e por outro, porque o facto de as pessoas à sua volta estarem de máscaras e a desinfectar as mãos e tudo e mais alguma coisa, aliviou-os. Mas, agora, são os que estão a lidar pior com o relaxamento das medidas. Mãe, a minha sugestão, é que tenhamos muita compaixão por nós mesmos e pelos outros, enquanto reprogramamos os nossos cérebros.
2. Por mais que imaginemos que até somos descontraídos em relação à covid, é inegável que estamos todos em modo hiper alerta em relação ao nosso corpo, atentos a todos os sintomas, assustados com a ideia de podermos ficar doentes, de precisarmos de ir ao hospital, e com medo, claro, de contagiarmos alguém. O alarme está a tocar dentro da nossa cabeça, é preciso, lentamente, fazer chegar aos neurónios a informação de que estamos mais seguros e que já não é preciso estar em modo de alerta.
3. Quando a ansiedade aumenta (seja por que razão for) ficamos mais aflitos, mas canalizamos esse mal-estar para coisas diferentes e, às vezes, parecem não estar de forma nenhuma relacionadas com a causa. Os miúdos estão mais birrentos? O seu chefe anda mais insuportável que nunca? Sente-se a explodir com o seu marido por tudo e por nada? Se pensar bem talvez chegue à conclusão que está tudo ligado. E o meu conselho é que as pessoas procurem ajuda, mesmo que digam a si mesmas que “não estou assim tão mal”. Sim, pode ficar pior — mais uma razão para agir imediatamente.
Ora bem, e para as saudades o que lhe posso receitar? Passeios em família ao ar livre. Com mais constipações ou menos. Vão fazer bem a tudo e ajudar-nos a esquecer mais facilmente a (ainda odeio dizer a) covid-19.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.