Não percebi nada
Quando é amor, por mais que nos esforcemos, não conseguimos esquematizá-lo num gráfico ou introduzir as suas razões no seguimento de uma conjunção explicativa.
Há uma música do André Sardet cuja letra sempre me intrigou: “Eu não sei o que me aconteceu/Foi feitiço/O que é que me deu?/Pra gostar tanto assim de alguém/ Como tu.” Assim posto fica-se com pena do pobre coitado, que se apaixonou por uma megera. Ele não sabe o que é que lhe aconteceu para gostar tanto de alguém como ela, uma pessoa tão má rês. Só pode ter sido feitiço para se ir embeiçar por um monstro daqueles.
Imagino-o, orgulhoso, a ir mostrar à sua amada a música que lhe dedicou, e a reacção dela ao aperceber-se de que a música é sobre o quão absurdo é ele gostar de alguém com as suas características tão pouco apaixonantes. “Só pode ter sido um feitiço porque nós não temos mesmo nada a ver, és intragável.”
Calculo que o letrista quisesse dizer: “De alguém como gosto de ti.” Mas talvez calcule mal e a escolha do pronome tenha sido propositada. Talvez Sardet se tenha inspirado nos sonetos que Shakespeare dedicou à célebre e terrível “Dark Lady”. Porque, realmente, no que toca ao amor, não se sabe bem o que acontece e há uma componente de lotaria. Há pouco de cálculo. Não se pensa: “ora bem o Sandro trabalha numa consultora, mora em Algés como eu, quer um menino e uma menina, noves fora, está feito, vou apaixonar-me pelo Sandro.”
Normalmente acabamos por ser mais Sardezianos: “Ora, mas porquê este?” Nem sempre se percebe bem. A única resposta válida à pergunta: “Por que é que gostas de mim?” que, volta e meia, casais em busca de mimo ou de afagos na auto-estima emitem (não, não é “foi feitiço”, mas é parecido) é “Não sei”. Todas as outras pressupõem que há motivos por detrás do amor, uma lógica. “Olha eu gosto de ti porque…” Não se explica. Gosta-se. Veja-se com os bebés. Ainda não fizeram nada, às vezes ainda nem têm o nome registado, e já os amamos loucamente. Não significa que o amor romântico tenha de ocorrer à primeira vista, embora seja comum. Nem que não haja afinidades que nos façam aproximarmo-nos mais deste ou daquele, claro que existem. Significa que, quando é amor, por mais que nos esforcemos, não conseguimos esquematizá-lo num gráfico ou introduzir as suas razões no seguimento de uma conjunção explicativa. Como canta Maria Bethânia: “Toda a razão, toda a palavra vale nada quando chega o amor.”
Podemos explicar muito bem uma teoria a alguém até que a compreenda, mas não podemos forçar alguém a gostar de nós: “Presta aqui atenção e apaixona-te se fazes o favor.”
É muito comum, quando há uma desilusão amorosa, no meio do desconsolo, dizermos: “Não percebi nada” e querermos forçar um entendimento para nos apaziguarmos.
O mesmo quando se vai a uma peça ou a um filme que não entendemos. Ficamos num poço de insegurança e acabamos por confessar: “Não percebi nada.” O esforço para perceber transtorna-nos.
Clarice Lispector escreveu que estava a ver um filme em que não entendeu nada, mas em que sentiu tudo. E que tinha muito medo de um dia ver um filme em que entendesse tudo mas em que não sentisse nada.
A lógica já tem o seu triunfo em muitos campos, e bem. Pode descansar em relação ao amor e à arte. A arte e o amor têm a vantagem de nos libertar da obrigação de perceber e de nos permitir viajar num campo de não-entendimento. A necessidade de controlo que temos, na qual tudo tem de fazer sentido e caber em moldes, faz com que nem sempre aceitemos a falta de nexo e que, por vezes, fiquemos irritados com o que foge ao nosso discernimento.
Ninguém regressa de um encontro amoroso ou de uma exposição a gabar-se: “Olha, percebi imenso!”
Quando sentimos, somos confrontados com uma compreensão, mas que não parece vir do cérebro e sim de um âmago quase físico e ilocalizável. Uma compreensão íntima que se torna, por isso, inexplicável. Ou, como resumiu André Sardet, da forma verdadeira, mas crua e implacável para com o ente amado que já é habitual na sua lírica: “Gosto de ti, simplesmente porque gosto.”