O início de um amor revela sempre o seu fim?
Estamos a dias de virar mais um ano no calendário, e de renovar desejos, talvez uma dúzia certa para quem não passa sem o ritual das 12 badaladas, 12 passas de uva, uma taça de champagne. A saúde, já se sabe, estará no topo, na frente da fila, mas quem anseia por novos inícios talvez engula a passa seguinte pelo amor.
Sandro Veronesi diz que sim, que o destino de uma relação amorosa se fixa, por inteiro, no seu início. Escreveu-o no seu último romance, Il Colibrì, galardoado em 2020 com o prestigiado prémio literário Strega, mas ainda sem uma versão em português; prémio, aliás, que este arquitecto, jornalista e escritor italiano já tinha ganho em 2006 com o livro Caos Calmo, publicado entre nós em 2008 pelas edições Asa e adaptado no mesmo ano para o cinema, num filme realizado por Antonio Luigi Grimaldi e protagonizado por Nanni Moretti.
Não havendo obra traduzida, sirvo-me de um pequeno trecho em francês, partilhado há uns quantos dias por um amigo. Aí, escreve Veronesi que no início de um amor há sempre um momento de revelação, um rasgo, uma espécie de iluminação avant la lettre, ou, para quem crê, uma espécie de iluminação espiritual, que nos deixa ver a relação a “florescer, a assentar no tempo, a tornar-se naquilo em que se vai tornar e a acabar como vai acabar. E tudo se vê porque, na realidade, toda a relação está contida no seu início, tal como a forma de tudo está contida na sua primeira manifestação”.
Será sempre assim? Será assim alguma vez? Foi alguma vez assim com alguém? Ou nunca foi? Não é o início de uma relação o tempo do incondicional? O tempo de uma viagem quase sempre imprudente, sem bússola, sem rota, com um mapa de pequeno comprimento e só rente ao que se beija, se abraça, se toca? O tempo da empatia, do absoluto, das promessas doces, em que não se pressentem defeitos, nem falhas, nem dificuldades, nem desilusões, nem mágoas, nem o fim?
Para Veronesi, esse flash ou premonição sobre o amor que está no seu princípio, não dura para além de um breve instante. Depois, não se deixa ver mais, desvanece-se ou é reprimido. É esta a razão, aliás, pela qual as estórias de amor reservam sempre surpresas, causam danos, prazer ou dor que não se antecipou e, apesar de tudo, insiste Veronesi, “sabíamo-lo (…) no início, num relance de lucidez, mas depois, para o resto das nossas vidas, deixamos escapar esse saber”.
Veronesi deu o título de O Colibri ao seu romance. O colibri, também conhecido como beija-flor, é como se explica aqui um pássaro intrigante, de corpo delicado, plumagem iridescente, capaz de se manter suspenso no ar e de voar, a uma velocidade vertiginosa, movimentando-se em diferentes direcções.
Estamos a dias de virar mais um ano no calendário, e de renovar desejos, talvez uma dúzia certa para quem não passa sem o ritual das 12 badaladas, 12 passas de uva, uma taça de champagne. A saúde, já se sabe, estará no topo, na frente da fila, mas quem anseia por novos inícios talvez engula a passa seguinte pelo amor.
Que o desejo trincado, acrescento eu, seja por um início cego à adivinhação da direcção que há-de seguir, e do seu fim. Brindemos a isso, a essa vertigem. O que seria de nós se não houvesse inícios de amor assim?