O diário íntimo de Laurence Phylomène, pessoa não-binária em transição de género

Em Janeiro de 2019, Laurence Phylomène, pessoa não-binária, começou a documentar fotograficamente as mudanças que as injecções de testosterona produziam no seu corpo e na sua mente. O fotolivro Puberty contém auto-retratos íntimos, coloridos, emocionais, que descrevem a sua jornada (em curso) até ao seu verdadeiro "eu".

"A preparar a minha injecção de testosterona. Vashti supervisiona por cima dos meus ombros" ©Laurence Philomene
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"A preparar a minha injecção de testosterona. Vashti supervisiona por cima dos meus ombros" ©Laurence Philomene

Enquanto crescia, Laurence Philomène sentia-se diferente dos seus pares. "Sentia que não tinha acesso a vocabulário que me definisse", refere, em entrevista ao P3, aludindo a termos como queer ou trans. "Só consegui perceber mais tarde, durante a adolescência [como definir-me]." Laurence assumiu-se, há já vários anos, como pessoa não-binária – ou seja, não se identifica nem com o género masculino nem com o feminino; o seu tratamento hormonal, que consiste em injecções de testosterona que lhe permitem alcançar um aspecto andrógino, teve início em Abril de 2018. "Em Janeiro de 2019, comecei a documentar as mudanças que a testosterona produz no meu corpo e na minha mente através da criação de um diário fotográfico", explica.

E assim nasceu Puberty, o projecto fotográfico transformado em fotolivro para o qual procura financiamento, até 19 de Janeiro, numa plataforma de crowdfunding. A existência de Laurence Philomène, natural de Montreal, Canadá, desde cedo gravitou em torno de pessoas queer e trans, motivo pelo qual diz ter sentido, desde cedo, um "forte sistema de apoio" que lhe permitiu assumir-se como pessoa não-binária e, mais tarde, começar o seu tratamento hormonal. "A princípio, a minha família não percebia porque é que eu queria fazer a transição", explica. "Mas, com a passagem do tempo, começaram a perceber que era algo muito positivo para mim e mudaram de ideias."

Um dos maiores desafios neste processo é conseguir apoio médico para garantir a viabilidade da transição. "É difícil conseguir uma prescrição do sistema nacional de saúde [canadiano], é um processo complexo e caro", diz. "Além disso, o principal desafio é alterar a percepção da sociedade relativamente às identidades trans". É, na opinião de Laurence Philomène, preciso palmilhar ainda um longo caminho no sentido de substituir a imagem estereotipada e a resposta negativa que essa suscita perante a comunidade trans por uma que apele ao "amor, respeito e aceitação" desse grupo.

As fotografias que preenchem as 288 páginas do livro, a ser editado pela Yoffi Press, são ora encenadas, ora cândidas, e descrevem, de forma colorida, saturada e autobiográfica, as peripécias do seu quotidiano. "Queria partilhar o meu mundo como um mundo colorido", refere Laurence Philomène. "É comum vermos conjuntos de fotografias que documentam identidades trans que se centram nas dificuldades, nos aspectos mais penosos das nossas vidas; mas com este projecto eu também quero partilhar as alegrias. Sinto que a cor é um código universal que suscita emoções em todas as pessoas, e isso é muito útil para comunicar diferentes camadas de significado numa imagem." A prática do auto-retrato acompanha Laurence Philomène desde a adolescência. "Puberty foi apenas uma continuação natural do trabalho que já realizava há vários anos, que consiste em explorar questões de género através da fotografia."

Com o projecto, Laurence documenta, a partir do ponto de vista pessoal, íntimo, a sua jornada através do seu processo de transição de género – algo que considera muito importante. "Enquanto artista, parece-me mais ético e mais autêntico contar esta história na primeira pessoa", refere. "É profundamente significante para mim, enquanto pessoa trans, ter autonomia na forma como conto a minha história." Acredita que a auto-documentação é uma forma eficaz de apropriação da narrativa do seu grupo, que considera marginalizado. "Enquanto crescia, só tive acesso à história LGBTQI+ através de livros de fotografia que trazia da biblioteca (...) e isso é algo que sempre me fascinou", refere. Muitas das histórias queer que não tinham, no passado, lugar em órgãos de comunicação de massas encontravam em linguagens e circuitos artísticos um veículo de comunicação e disseminação. Por esse motivo, Laurence Phylomène pensa que a liberdade de criar a própria história é uma marca identitária do próprio grupo onde pertence. 

Puberty, cujo título alude a uma espécie de nova puberdade pós tratamento hormonal, pretende "desafiar o espectador a olhar a identidade para além do aspecto binário". Acredita que tornar estas realidades visíveis é apenas o primeiro estágio da transformação societal que a comunidade gostaria de ver em curso. "Acho que precisamos de passar essa primeira fase e chegar ao nível em que genuinamente nos respeitamos mutuamente como seres humanos complexos e valiosos – e eu tenho esperança que este livro contribua para aumentar a empatia e a ligação entre as pessoas." Espera, também, que "daqui a cinco, dez, 100 anos, as pessoas possam ver o livro e perceber como era ser não-binário nesta era". O mundo ideal, refere Laurence, "seria um mundo mais divertido, mais gentil, onde as pessoas são encorajadas a serem o que quiserem, para além de expectativas de género". 

"Conduzimos 130 quilómetros para fora de Reiquejavique até ao chalé do Kristjan, no Oeste da Islândia, encontrámos esta piscina geotérmica - a água ainda estava quente."
"Conduzimos 130 quilómetros para fora de Reiquejavique até ao chalé do Kristjan, no Oeste da Islândia, encontrámos esta piscina geotérmica - a água ainda estava quente." ©Laurence Philomene
"Musgo centenário cobre as rochas vulcânicas"
"Musgo centenário cobre as rochas vulcânicas" ©Laurence Philomene
©Laurence Philomene
"Natureza morta do quotidiano"
"Natureza morta do quotidiano" ©Laurence Philomene
"Se algo, apenas mergulho na pessoa que sou um pouco mais cada dia"
"Se algo, apenas mergulho na pessoa que sou um pouco mais cada dia" ©Laurence Philomene
©Laurence Philomene
"Casa de bonecas durante um nevão"
"Casa de bonecas durante um nevão" ©Laurence Philomene
"Rendi-me aos prós e contras da existência"
"Rendi-me aos prós e contras da existência" ©Laurence Philomene
"Esse Inverno foi passado sobretudo em casa com o meu gato - a aprender a tomar conta de mim durante a minha transição"
"Esse Inverno foi passado sobretudo em casa com o meu gato - a aprender a tomar conta de mim durante a minha transição" ©Laurence Philomene
"22 de Maio. Celebrando o meu 26.º aniversário no apartamento da Nina. Completámos um mês"
"22 de Maio. Celebrando o meu 26.º aniversário no apartamento da Nina. Completámos um mês" ©Laurence Philomene
Capa de <i>Puberty</i>, de Laurence Philomene, que procura financiamento para ser editado pela Yoffi Press através de campanha de crowdfunding
Capa de Puberty, de Laurence Philomene, que procura financiamento para ser editado pela Yoffi Press através de campanha de crowdfunding