Para quê esperar pela imunidade das crianças?
Como pediatra tenho aconselhado o melhor que sei. Se tivesse filhos entre os 5 e os 11 anos vacinava-os, assim como vacinei os meus três filhos adolescentes. Mas a decisão é sempre dos pais e cuidadores.
E esperar, para que os meninos ganhem imunidade natural?… Esperar, para quê?
Esperar para que, à semelhança de países onde os números de crianças infectadas são já expressivamente maiores, venham a existir no nosso país muitas crianças internadas porque precisam de oxigénio ou estão desidratadas? Não esquecer que a Ómicron é explosivamente contagiosa, incomparavelmente mais do que o sarampo. Por isso, mesmo sendo alegadamente mais ligeira a infeção por esta estirpe, os números vão galopar, e paralelamente a gravidade também.
Esperar por estudos que indiquem se este aumento de internamentos, cerca de cinco vezes maior agora com esta variante, corresponde a crianças vacinadas ou não vacinadas? Não é preciso, porque já existem, nomeadamente nos Estados Unidos, que mostram que são as crianças não vacinadas.
Esperar que, à semelhança desses países, o número de crianças com Síndrome Inflamatório Multissistémico (MIS-c) aumente paralelamente ao número de casos de infectados em meninos que até foram assintomáticos ou tiveram doença covid ligeira, mas que oito a dez semanas depois têm uma insuficiência cardíaca súbita, com falência de muitos outros órgãos do corpo? Não esquecer que nos Estados Unidos foram reportados, nesta fase, mais de cinco mil casos de MIS-c em idade pediátrica, com cerca de 50 mortes, e ainda não houve tempo suficiente para o aumento proporcional ao tsunami de casos de Ómicron.
Esperar que, à semelhança desses países, existam muitas crianças com Síndrome de Covid Longo (com vários sintomas persistentes durante meses, tais como dificuldade de concentração, cansaço e falta de ar), tantas que justificam a existência de hospitais exclusivamente dedicados ao tratamento destes meninos, como é o caso de Israel, e que acontece mesmo nos que tiveram apenas sintomas ligeiros ou foram assintomáticos?
Esperar “porque esta vacina não evita a infecção”, dizem aqueles que são adeptos do “princípio da precaução”, e por isso devemos “deixar as crianças em paz”? Já me disseram isto. Já me acusaram de não respeitar as crianças, de estar a ser patrocinada por laboratórios, entre outros insultos que implicam uma imaginação muito fértil. Decidi ignorar. Sou médica de crianças, e acredito ser este o seu superior interesse, à luz da evidência científica actual.
É perfeitamente natural os pais terem dúvidas, num mar de notícias falsas, e com a angustiante incerteza como mote do período da pandemia, já demasiado longo. Como pediatra tenho aconselhado o melhor que sei. Se tivesse filhos entre os 5 e os 11 anos vacinava-os, assim como vacinei os meus três filhos adolescentes. Mas a decisão é sempre dos pais e cuidadores.
A vacina que dispomos actualmente, não evita a infecção, mas reduz significativamente os casos graves e a mortalidade global. É claramente prioritário vacinar os mais velhos e vulneráveis, com a terceira dose de reforço, que ainda está em falta numa percentagem significativa.
Apesar da efectividade vacinal ser inferior com a Ómicron, aumenta com a dose de reforço e a protecção contra hospitalizações ronda os 88%, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA).
Mas um incêndio de grandes proporções combate-se em todas as frentes. Os agregados familiares, são compostos por pessoas de todas as idades. Os mais novos, além do risco de também poderem ter doença grave, podem transmitir o vírus no contacto dentro de casa, aos pais, irmãos e avós.
E não há condições para alterar medidas de isolamento dos coabitantes, enquanto os números de infectados não o permitirem. Ou seja, é uma pescadinha de rabo na boca. Ou seja, os pais têm de faltar ao trabalho, os irmãos mais velhos têm de faltar à escola, os avós mais vulneráveis mesmo vacinados podem ser infectados e nem sempre as coisas correm pelo melhor.
Subscrevo na íntegra as palavras de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, quando sublinhou que o processo de vacinação tem de ser acelerado novamente, e transversalmente a todas as idades elegíveis para vacinação. E que as escolas não devem fechar. O risco a nível de repercussão na aprendizagem e na saúde mental de crianças e adolecentes é enorme.
E quando o ensino é não presencial, é muito menos inclusivo. Sem tirar o mérito ao esforço louvável dos docentes, o ensino público não dispõe das verbas do privado para criar condições adequadas para as aulas online. Já estamos atrasados, como disse Miguel Guimarães, para que o efeito do reforço da vacinação dos professores e dos grupos etários pediátricos elegíveis seja atempado relativamente à abertura das escolas.
Mas mais vale um pouco tarde, do que esperar. Porque esta espera, pode implicar a mutação do vírus nos nichos onde se está a replicar à vontade — em Portugal nas crianças, onde as taxas de incidência são mais elevadas, numa estirpe muito mais agressiva.
É verdade que isto também pode acontecer nos países onde as taxas de vacinação são muito baixas, mas não podemos arcar com o peso do mundo às costas. Podemos sim decidir sensata e racionalmente, fazendo orelhas moucas à desinformação, que teima em nos perturbar a todos com dúvidas e teorias de conspiração, muitas das quais completamente descabidas e outras a que ninguém sabe responder.
Questionam-me, muitas vezes, sobre os “efeitos a longo prazo” da vacina. Eu não sei a resposta e ninguém sabe, mas os especialistas das sociedades de pediatria a nível mundial são unânimes em relação às vantagens actuais de vacinar as crianças: a vacina é segura e é eficaz na redução de doença grave.
Mas ninguém sabe também qual vai ser o comportamento deste vírus a longo prazo, pois não? Esperar pela imunidade natural das nossas crianças, com os conhecimentos de que dispomos no presente, e com o que já aprendemos sobre este vírus, um autêntico camaleão traiçoeiro e oportunista, é a real imprudência.
A imunidade natural não é sinónimo de um passeio pela natureza, e no caso deste coronavírus, está provado que também em crianças a infecção pode ser grave, e pode deixar marcas. A desejada passagem de pandemia a endemia não deve ser à custa de mais morbilidade, ou seja, no caso das crianças, mais meninos internados, com MISc, com Covid Longo, ou sem poder ir à escola.
Jogar pelo seguro não é esperar, mas sim vacinar.