Fotografia
No Barroso, lítio é sinónimo de “angústia e revolta”
Debaixo das montanhas do Barroso jaz o metal que promete revolucionar a região: o lítio. A fotógrafa franco-portuguesa Silvy Crespo, filha de um natural de Montalegre e autora do projecto The Land of the Elephants, não tem dúvidas: “As promessas do passado são as mentiras do presente: criação de emprego e crescimento económico."
Sob a superfície das imponentes montanhas do Barroso, em Trás-os-Montes, jaz o metal precioso que promete revolucionar a região: o lítio. A extracção do “ouro branco”, como é simbolicamente apelidado por muitos, é encarada pelas populações dos concelhos de Boticas e Montalegre como uma ameaça ao seu modo de vida e ao equilíbrio ambiental do território – características cuja singularidade foi reconhecida, em Abril de 2018, pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, aquando da atribuição da classificação de património agrícola mundial.
A fotógrafa franco-portuguesa Silvy Crespo, filha de um natural de Montalegre, garante que existe, no passado mineiro da região, uma ferida por fechar que não permite que uma nova se abra. “Recursos pilhados, aspirações iludidas”, resume na sinopse do projecto fotográfico de cariz documental (e “não jornalístico”, sublinha) The Land of the Elephants, que iniciou em Junho de 2019. “As promessas do passado são as mentiras do presente: criação de emprego e crescimento económico. Mas quem poderia deixar de ler o sermão inscrito nas rochas do Barroso?”
Ao longo de vários meses, entrecortados pelos confinamentos obrigatórios impostos pelos governos em resposta à pandemia de covid-19, Silvy Crespo contactou com habitantes e associações de Boticas e Montalegre que se opõem veementemente à exploração de lítio naquele território. “A maioria das pessoas com quem falei expressa uma recusa em ver destruído o património natural da região”, contou ao P3, em entrevista, a partir de Paris. “São pessoas que vivem em harmonia com o meio ambiente e desejam manter o seu estilo de vida; estão cientes dos impactos negativos de uma mina [a céu aberto] nos ecossistemas – para a qualidade do ar e da água – [e das implicações negativas] para pessoas e animais."
Segundo Silvy, a população do Barroso "prefere protecção ambiental a promessas de riqueza e empregos”. Quais, exactamente? A empresa que irá explorar o lítio no Barroso, a Savannah, garante criar cerca de 300 postos de trabalho na fase de construção da mina e empregar 200 trabalhadores durante a fase de exploração. Compromete-se também a pagar até 600 mil euros por ano para implementar um Plano de Partilha de Benefícios e mais 100 mil euros anuais para o Plano de Boa Vizinhança, ambos criados para compensar as comunidades locais pelos impactos negativos da sua actividade.
Promessas de riqueza e emprego, porém, não são novidade para quem habita a região; elas chegaram a Montalegre, associadas à exploração mineira, há mais de um século quando a mina de volfrâmio da Borralha, na freguesia de Salto, foi fundada, em 1902. Foi então, e até 1986, o principal pólo empregador do município, chegando a mobilizar, ao longo de décadas, cerca de dois mil trabalhadores. A mina, agora desactivada, fica a escassos 25 quilómetros de distância da futura Mina do Barroso, uma proximidade que não é ignorada pelos habitantes e que lhes traz memórias. “Durante as minhas viagens, ouvi muitas vezes falar da época da Borralha”, constata a fotógrafa. “Claro que as pessoas se lembram da riqueza, mas também se lembram da silicose pulmonar que ceifou a vida de tantos mineiros e do lastro de pobreza e destruição que o encerramento da mina deixou.”
Durante a realização do projecto, a franco-portuguesa visitou a mina abandonada, onde tirou algumas das fotografias que integram o trabalho. “O legado da mineração na Borralha é tristemente visível, uma manifestação de um lento e duradouro processo de violência”, refere, aludindo à lição que a população do Barroso não esqueceu. “Vêem-se estruturas em ruínas, solo seco, máquinas enferrujadas que os ramos começam a cobrir. É impossível não notar os danos permanentes e podemos duvidar se algum dia serão reparados.” A reabertura da mina, porém, está prevista para breve. A 28 de Outubro de 2021 foi assinado contrato de exploração de volfrâmio na Borralha, mesmo contra a vontade dos mais de 1370 subscritores da petição que apelam ao seu cancelamento.
Não existe consenso no que concerne o impacto que a exploração de lítio terá sobre o Barroso, quer a nível ambiental, quer a nível social ou sanitário. Populações e associações ambientalistas alertam para vários perigos: risco de derrocadas, poluição dos solos, contaminação de cursos de água subterrâneos, degradação da qualidade do ar devido a poeiras resultantes da actividade a céu aberto, impactos nefandos para a saúde humana e para a sobrevivência da fauna local (nomeadamente, para o lobo ibérico e para a toupeira-de-água). A sobreexploração dos recursos hídricos da região por parte da mina também preocupa os moradores, que temem ver condicionado o acesso a água proveniente dos seus poços. A Savannah e a Agência Portuguesa do Ambiente garantem que os riscos e danos podem ser atenuados através de intervenções direccionadas a cada um dos problemas que poderão surgir, o que não tranquiliza ou convence quem por ali vive.
Silvy, que se recusou a utilizar câmara fotográfica digital para evitar o recurso a baterias de lítio, declara que “o projecto nasceu da angústia e da revolta pessoais”. “Sinto angústia quando penso que um território tão bonito pode deixar de o ser, e que a fauna e a flora duras e generosas, ecossistemas únicos e, claro, tradições ancestrais resultantes da história e da topografia deste território possam estar em risco. Também me revolta a observação das tentativas de defesa de projectos que são destrutivos; isso permite-nos antever um desfecho indesejado.” Silvy aponta o dedo a quem se recusa a respeitar a vontade dos habitantes. “Sinto revolta também diante da falta de consideração, de consulta das populações locais, que serão as primeiras a serem atingidas por esta mudança. As pessoas que conheci lutam pela defesa do bem comum. É importante lembrar que o território foi reconhecido como património agrícola mundial”, classificação que poderá ficar em risco se o impacto da mineração sobre o modo de vida das populações for expressivo.
O projecto, que foi exibido recentemente em Braga ao abrigo do festival Encontros da Imagem, foi inteiramente fotografado em médio formato, com recurso a filme expirado. “Como fotógrafa, esta reflexão torna-se importante, uma vez que a minha ferramenta de trabalho depende de processos de extracção”, reflecte Silvy. “Tanto os sais de prata que compõem a película fotográfica como as baterias das câmaras fotográficas digitais implicam extracção de minério. A própria fotografia é um meio extractivo – consiste em extrair porções da realidade de um todo.” A questão, porém, está longe de se resumir ao impacto da criação fotográfica no meio ambiente – embora a autora não o descure. “As matérias-primas que queremos extrair do solo são encontradas em muitos produtos do nosso quotidiano. Todos nós, portanto, temos uma parcela de responsabilidade no que está a acontecer e na possível destruição deste território e de outros.”