Fotografia
A guerra roubou-lhes as pernas. O futebol resgatou-os da pobreza para o estrelato
Os elementos das equipas de futebol The Flying Stars têm algo em comum: a trágica perda de um pé, uma perna, um braço durante a guerra civil da Serra Leoa. O fotógrafo Todd Antony garante que, dentro das quatro linhas, "mesmo com muletas, a velocidade e a destreza destes jogadores é incrível" e que "o futebol os ajudou a recuperar a alegria, a autoconfiança e a esperança num futuro melhor para pessoas com deficiência".
Durante a guerra civil que decorreu na Serra Leoa, entre 1991 e 2002, a amputação de mãos, braços, pernas ou pés de civis fazia parte da campanha de terror levada a cabo pelos soldados do grupo militar rebelde Frente Revolucionária Unida, que almejava a queda do Governo do então presidente Joseph Momoh na esperança de conseguir instaurar um novo regime político. Estima-se que cerca de 28 mil serra-leoneses tenham sofrido amputações em consequência directa ou indirecta das suas acções.
Sem surpresa, há um trauma de guerra, físico e psicológico, que une os jogadores das equipas de futebol The Flying Star Amputees, que existem por toda a Serra Leoa. "Nasceram da adversidade da guerra", afirma o fotógrafo neozelandês Todd Antony, que acompanhou uma das equipas, em entrevista ao P3. No campo de futebol, comportam-se como atletas profissionais. Após ter assistido a um jogo, Todd garante que "a sua velocidade, força e destreza são incríveis". "Mesmo com muletas, eles atingem grandes velocidades e as suas ofensivas são arrebatadoras." É por esse motivo que pequenas multidões os acompanham sempre que treinam ou jogam — o que constitui uma nova forma de olhar para este grupo de pessoas com deficiência.
"Pessoas amputadas são vistas, na Serra Leoa, como sendo incapazes de contribuir para a sociedade", refere o fotógrafo. "Em consequência, muitas são forçadas a mendigar nas ruas, por não conseguirem arranjar trabalho ou emprego." Num país onde muitos milhares de soldados da Frente Revolucionária Unida nunca foram devidamente punidos, as feridas de guerra permanecem abertas, por sanar. "Acredito que, de forma inconsciente, os amputados sejam vistos pela população como lembretes diários da guerra." Uma guerra, recorde-se, que vitimou mortalmente cerca de 50 mil pessoas. "O Governo providenciou pouca ou nenhuma ajuda aos milhares de amputados de guerra", o que contribui largamente para a sua marginalização.
"Todos os jogadores com quem falei disseram-me que quando estão a jogar futebol se esquecem, por momentos, que são amputados", afirma Todd Antony. "Isso faz com que se sintam livres." O convívio destes jogadores com pessoas que passaram por um trauma semelhante, e que entendem as suas implicações, também é benéfico. "Funciona quase como terapia", compara. "Do meu ponto de vista, e do deles, jogar futebol melhorou a forma como são percepcionados pelos outros e atenuou a discriminação de que são vítimas. Quando as pessoas os vêem a jogar de forma tão atlética e destra, começam a vê-los de forma diferente, mais positiva."
Uma mudança muito necessária, dado o historial de cada um destes jogadores. Para além da já referida discriminação, eles guardam memórias de infância traumáticas que dificilmente poderão esquecer. Umaru Sandi, por exemplo, que é capitão da equipa Flying Stars da cidade de Bo, tinha cinco anos quando as forças rebeldes atacaram a sua aldeia, forçando-o a refugiar-se na floresta, na companhia de familiares. "Ele foi apanhado num fogo cruzado e um estilhaço de uma árvore fustigada por uma rajada de metralhadora atingiu-o no pé. O tio conseguiu levá-lo ao colo até um hospital que se encontrava em ruptura de medicamentos. A perna começou a apodrecer e tiveram de amputá-la para salvar-lhe a vida."
Cada um dos seis jogadores tem uma história de vida dramática, que partilha no site oficial do clube. Mohamed Lappia, ponta-de-lança da equipa, perdeu a perna quando pisou uma mina, aos 12 anos. Fugia de uma aldeia atacada por rebeldes "onde foram mortas muitas pessoas". Lappia conseguiu escapar, com outros membros da família, mas a sua irmã mais nova foi capturada pelos rebeldes. Acabou por morrer vítima de múltiplas violações. Após alguns meses escondido no mato com a família, decidiram que era tempo de saírem do seu esconderijo e procurarem a cidade mais próxima. "Foi nessa estrada que eu pisei uma mina terrestre", descreve o jogador. "A explosão cortou-me a perna abaixo do joelho e um dos fragmentos matou o meu pai instantaneamente."
O apoio a estes homens tornou-se importante para o fotógrafo, que confessa ter sido profundamente tocado pelas suas histórias. "O tempo que passei com eles tornou-me mais humilde, fez-me colocar a minha vida em perspectiva", concluiu. "Algumas das contrariedades quotidianas que nos frustram são insignificantes face aos desafios que eles enfrentam todos os dias. A sua força e a dignidade são um exemplo para todos nós." No sentido de ajudar a equipa, o fotógrafo organizou uma campanha de crowdfunding, ainda a decorrer, que tem como objectivo recolher fundos para a compra de novas muletas e para o financiamento dos transportes para os jogos que decorrem noutras cidades. Com o projecto The Flying Stars, Todd pretende consciencializar para a diferença e combater o estigma que envolve pessoas amputadas. "Quero mostrar ao mundo que nunca somos assim tão diferentes."