A rota de um “caso suspeito” no Alentejo profundo

O medo do contágio não nos pode tornar desumanos, irracionais, nem criar este estigma que só leva as pessoas a esconderem os sintomas e a não fazerem testes, como está a acontecer nos meios mais pequenos.

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"Fiz questão de entrevistar alguns vizinhos e amigos de vizinhos, e descobri que muitas pessoas daqui evitam os testes" @designer.sandraf

Querida filha,

Prepara-te. Isto não é uma simples carta, é uma reportagem-birra. E não há melhor maneira de fazer uma reportagem sobre o funcionamento do SNS do realizá-la como doente. Ai tudo muda de figura, não só porque vemos as coisas como realmente são — e não no dia de uma visita ministerial —, como nos encontramos na mesma situação de vulnerabilidade do que o comum dos mortais. E se, obviamente, podemos ter “azar”, esse azar é aleatório o que significa que como nos calhou a nós podia, perfeitamente, calhar a outra pessoa, e bem mais indefesa.

Como sabes, atacada por uma constipação mega forte e um autoteste positivo, liguei para a Saúde 24, dando início à saga pela rota da Covid no Alentejo profundo. Mandaram-me para uma Área Dedicada aos Doentes Respiratórios (​ADR) Comunidade Alentejo Central, em Estremoz, já que o “algoritmo” indicava que devia ser vista por um médico. A SMS com todas as indicações chegou muito direitinha, e meti-me no carro para fazer os 60 quilómetros até lá, sempre a pensar como é que quem não tem carro, ou está demasiado doente para o conduzir, cobre uma tal distância

Uma vez no local, toquei à campainha e, enquanto esperava, li o papel colado no vidro que explicava que uma ADR – C consiste, e cito, numa “Área Dedicada ao Atendimento e Observação de Doentes de Comunidade”, onde “são atendidos apenas os doentes que apresentem queixas respiratórias, seguindo as normas da Direcção-Geral de Saúde”, doentes “previamente selecionados”, nomeadamente pela Saúde24. Pronto, pensei eu, estava no sítio certo.

Por fim surgiu um jovem vestido de azul que tentou falar comigo através da porta fechada, mas a coisa não resultou bem. Aparentemente a medo entreabriu-a, não sem antes me ordenar que desse um passo atrás para a linha vermelha pintada no passeio em que, confesso, nem tinha reparado. Mostrei-lhe no telemóvel a mensagem recebida e contei a minha história. Protestou: “Você não devia vir aqui”, “Você tem de ligar outra vez para a Saúde24, porque a enganaram”, e mais uns ​você não deve, não sabe e não pode.

Ana, eu sei que o “você” pode parecer irrelevante quando o que está em causa são cuidados de saúde, mas acredita que não é. Tratar alguém, neste caso de mais de 60 anos, por um simples “a senhora”, mudaria logo o tom da conversa, reduziria a animosidade e tornaria o diálogo imediatamente mais educado.

Por fim concedeu. Talvez a médica pudesse ver-me. Pediu-me para enumerar os sintomas, pareceu valorizá-los (até mais do que eu) e acabou por dizer que acedesse ao centro por uma outra porta, para preencher a ficha. Na sala de espera não estava literalmente ninguém, deixando cair por terra a desculpa de sobrecarga de trabalho para este atendimento tão deprimente.

No guichet uma senhora recebeu os meus dados, enquanto num corredor adjacente – mas à minha vista e suficientemente próximo para que conseguisse escutar a conversa o jovem que aceitara advogar a meu favor parecia procurar convencer a médica de bata, máscara, viseira e luvas de que eu merecia ser atendida. Argumentava:

Ela diz que tem queixas.

A médica olhava-me, enquanto escutava os meus sintomas ditados por terceiros, reagindo com um:

— Mas ela não devia era cá estar!

O rapaz concordava enfaticamente:

— Pois não. A gente devia falar com a Saúde24 para pararem com isto!

Até que a senhora doutora rematou com um:

— Mas eu não vejo casos suspeitos! —, virando as costas.

Decidi sentar-me e aguardar, observando o relógio na parede que, em não estando parado, porque não estava, às dez da manhã indicava 8h15, o que talvez não seja tão irrelevante como parece à primeira vista. Quem sabe se a última vez que o acertaram foi aos 23 de Maio de 1993, data em que, segundo a lápide, o centro foi inaugurado por “SUA EX.ª O PRIMEIRO-MINISTRO, PROFESSOR ANÍBAL CAVACO SILVA”? (Ana, escrevi em maiúsculas porque é assim que lá está.)

Ou talvez estivesse afinado pelo meridiano de Estremoz, e um café levasse a médica a mudar de ideias. Ou, em não lhe sendo possível ver um “caso suspeito” — em contradição com as indicações coladas nas portas —, tivesse a delicadeza de vir explicar ao seu único potencial doente o que se passava.

Infelizmente não aconteceu. Nunca mais a vi.

Espera Ana, ainda não acabou. Minutos depois surgiu em cena uma nova personagem, a quarta que me saía ao caminho. Vestida de branco, em não sendo Nossa Senhora só podia ser enfermeira, chamou-me ao guichet para me comunicar que estava no local errado, quer dizer que tinha sido o certo, mas já não era, porque desde que fora decretado o Estado de Calamidade afinal onde eu devia dirigir-me era a... Évora. Ofereceu-se para me passar uma carta de recomendação. Ana, repara, o que me estava a dizer era que não só os 60 km que percorri eram em vão, como que teria de andar mais 50 km, e depois fazer aproximadamente a mesma distância para regressar a casa. Como se fossem tudo pormenores e quem está doente e frágil não merecesse mais respeito e cuidado.

Recusei a carta. Aconselhou-me a queixar-me antes à linha Saúde 24. A culpa era deles, insistia. Já reparaste como isto é habitual? Em lugar de procurarem soluções, mesmo quando os erros são dos outros, sitiam-se neste jogo de culpas, lavando as mãos à Pôncio Pilatos. A pessoa concreta que têm à frente é invisível.

A porta para a rua estava de novo fechada à chave – não fosse entrar mais um doente! , destrancada por fora pelo quinto e último actor desta tragicomédia, que deu um salto para trás à minha passagem, afastando-se a passos largos, certamente com medo da contaminação. Está tudo louco, Ana? O medo do contágio não nos pode tornar desumanos, irracionais, nem criar este estigma que só leva as pessoas a esconderem os sintomas e a não fazerem testes, como está a acontecer nos meios mais pequenos.

Queixei-me à Saúde 24, onde um senhor com sotaque de português do Brasil fez aquilo que os outros deviam ter feito: foi empático, educado, compreendeu a minha frustração, lamentou o erro, registou a queixa e procurou soluções. “Só” isso faz a diferença toda, mas enquanto quem serve o público no serviço público (nome que devia dizer tudo), não o entender, enquanto as chefias não derem o exemplo, nada vai mudar substancialmente em Portugal.

O que aconteceu a seguir? A Saúde24 enviou-me os códigos para fazer o PCR num dos laboratórios referenciados numa lista oficial. Filha, quando vires os números dos infectados às segundas e terças-feiras podes esquecer — aos domingos no Alentejo estão todos fechados, mesmo em Évora, às segundas-feiras quase todos já cheios, mas por fim consegui uma vaga numa clínica onde foram impecáveis. Finalmente chegaram os resultados, todos negativos. A tua mãezinha não teve covid-19, mas esteve doente. E para a doença não recebeu atendimento, essa é que é essa.

A reportagem continua. Fiz questão de entrevistar alguns vizinhos e amigos de vizinhos, e descobri que muitas pessoas fogem dos testes. A senhora da farmácia, que é mesmo dedicada, bem insiste, mas temem o estigma. Não querem ter “aquela coisa”. Preferem dizer que é gripe que, curiosamente, também se contagia como a lepra mas que não está mal cotada. Quando pioram vão aos centros de saúde, mas lamentam-se de que mal referem dificuldades respiratórias — através da porta fechada, pelos vistos agora é regra — “enxotam-nos para uma carrinha como se fossemos cães peçonhentos”. Por isso muitos ficam em casa a tomar o que para lá têm e, depois, ou passa... Ou chamam o 112. As ambulâncias aparecem rapidamente, constatei-o duas vezes só esta semana, mas os relatos no regresso deixaram-me de cabelos em pé. Os familiares, esses, ficam sem notícias dias inteiros, até receberem finalmente uma chamada para os irem buscar. Ana, velhinhas de noventa anos recebem chamadas às dez horas da noite para irem recolher os maridos doentíssimos a um hospital a 60 km dali!

Pronto, se quiseres posso continuar amanhã esta birra, porque sinceramente é de nos atirarmos para o chão a bater com os pés e as mãos na esperança de que alguém nos oiça.


Querida Mãe,

Obrigada, agente Isabel Stilwell por ter dado o corpo às balas e dar voz a esta birra tão importante. E já agora, você como se sente?

Beijos


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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