Nona Faustine denuncia os lugares da escravatura de Nova Iorque

White Shoes, da norte-americana Nona Faustine, contém auto-retratos da autora nos lugares onde a história da escravatura existiu e foi apagada. "Diante da câmara fotográfica, tentei sentir aquilo que essas pessoas terão sentido. Seres humanos que sabiam que eram muito mais do que escravos foram vendidos, ali, à melhor oferta."

"Dorothy Angola, Mantém-te Livre, Na Terra dos Pretos". Minetta Lane, Village, Cidade de Nova Iorque, 2021. "Dorothy Angola (Dorothy Creole) foi uma das primeiras mulheres escravas trazidas para Nova Iorque pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, entre 1626 e 1640. Ela foi casada com Paulo d'Angola, um dos primeiros africanos a viver em Nova Amesterdão como escravo semi-livre. Quando ele morreu, ela recorreu a um tribunal holandês para garantir a herança da terra de ambos para si e para os filhos, que ficava a uma milha de distância de Nova Amesterdão, na chamada 'Land of the Blacks' ('Terra dos pretos', em tradução livre)." ©Nona Faustine
Fotogaleria
"Dorothy Angola, Mantém-te Livre, Na Terra dos Pretos". Minetta Lane, Village, Cidade de Nova Iorque, 2021. "Dorothy Angola (Dorothy Creole) foi uma das primeiras mulheres escravas trazidas para Nova Iorque pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, entre 1626 e 1640. Ela foi casada com Paulo d'Angola, um dos primeiros africanos a viver em Nova Amesterdão como escravo semi-livre. Quando ele morreu, ela recorreu a um tribunal holandês para garantir a herança da terra de ambos para si e para os filhos, que ficava a uma milha de distância de Nova Amesterdão, na chamada 'Land of the Blacks' ('Terra dos pretos', em tradução livre)." ©Nona Faustine

O que é que uma pessoa afro-americana sente ao permanecer nos mesmos lugares onde se venderam homens, mulheres e crianças africanas há cerca de 150 anos? A fotógrafa afro-americana Nona Faustine quis saber. E o que sentiu não pode esquecer - não quer esquecer. O seu corpo, a sua cor, tornaram-se no único vestígio de escravatura nos locais por onde passou e se auto-retratou: locais onde se leiloavam escravos, antigos cemitérios africanos, quintas de colonos esclavagistas, cais onde os navios negreiros atracavam. Despida sobre um par de sapatos brancos, Nona dedicou nove anos à denúncia destes lugares, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, desenterrando o passado. O resultado é série fotográfica White Shoes, que a editora Mack Books editou em formato de fotolivro em Novembro de 2021.

"Agora, Water Street é uma estrada de dois sentidos ladeada de um aterro que ocupa quatro quarteirões. Há arranha-céus à sua volta." À primeira vista, aquela é apenas mais uma rua da cidade de Nova Iorque. "Perguntava-me com frequência se era aquilo que eu sentia naquele lugar que marcava a experiência de lá estar. Porque não conseguia ver nenhum vestígio da tristeza e do sofrimento que resultaram das actividades que um dia ali tiveram lugar. (...) É difícil criar algum tipo de relação com o passado devido ao apagamento." Quando se fotografou, despida, naquele lugar, "sentiu-se apenas uma mulher livre, até certo ponto". Na esquina que liga Water Street e Pearl Street estava sediada, entre 1711 e 1762, uma casa de leilão de escravos. "Pessoas escravas saíam dos barcos que atracavam nas proximidades e eram vendidas ali."

Ao retratar-se no local, Nona Faustine sentiu "medo e fascínio", escreve nas páginas do livro. "Diante da câmara fotográfica, tentei sentir aquilo que essas pessoas terão sentido. Seres humanos que sabiam que eram muito mais do que escravos vendidos, ali, à melhor oferta. Terão pensado que são muito mais do que aquilo que os olhos podem ver. Quantas mentes brilhantes foram emprisionadas, vendidas, reduzidas ao estatuto que era atribuído a um cavalo, uma mula, uma vaca? Pensei no grande potencial perdido naquele instante, nos grandes artistas, nos brilhantes académicos, escritores, filósofos, professores, arquitectos, inventores, cientistas que se perderam. Pessoas que podiam ter contribuído de formas incríveis para o desenvolvimento da sociedade."

Ao longo das 72 páginas do fotolivro, cada imagem carrega o peso das anteriores; e o corpo de Nona Faustine adquire maior carga simbólica. O silêncio daqueles lugares, que ocultam um passado sombrio, torna-se progressivamente mais incompreensível, mais incómodo. Há, também, uma lição de História em cada imagem, que é acompanhada de legendas pormenorizadas relativas aos locais que elegeu - algumas podem ser lidas nesta fotogaleria. "O meu trabalho é um tributo à minha mãe, à minha avó e bisavó."

"Eles marcavam a terra com troféus e instituições obtidos através de violações e conquistas", Tweed Courthouse, Cidade de Nova Iorque, 2013. O Tweed Courthouse foi construído entre 1861 e 1881 sobre um cemitério africano. Foram descobertas oito sepulturas sob o edifício. Em 2002, foram encontrados 23 esqueletos intactos, a maioria em frente à escadaria renovada, a poucos centímetros de profundidade do passeio que está diante do edifício. É nesse local que permanecem, rodeados de fios eléctricos e de comunicações.
"Eles marcavam a terra com troféus e instituições obtidos através de violações e conquistas", Tweed Courthouse, Cidade de Nova Iorque, 2013. O Tweed Courthouse foi construído entre 1861 e 1881 sobre um cemitério africano. Foram descobertas oito sepulturas sob o edifício. Em 2002, foram encontrados 23 esqueletos intactos, a maioria em frente à escadaria renovada, a poucos centímetros de profundidade do passeio que está diante do edifício. É nesse local que permanecem, rodeados de fios eléctricos e de comunicações. ©Nona Faustine
"Pressionando os Deuses por um milagre", Prospect Park, Brooklyn, Estado de Nova Iorque, 2016. No testamento de Pieter Lefferts, o patriarca de uma família holandesa que tinha escravos: "Para o filho mais velho, a aia negra Beth é agora sua propriedade; o seu filho Jacob terá o rapaz negro Tom; o seu filho Jan terá o negro Henry. A sua filha Adriaentje terá a aia negra Neny; a sua filha Anti terá a aia negra Lies, a filha Abigael deverá comprar uma aia para si ou ficar com o rapaz negro Isaac."
"Pressionando os Deuses por um milagre", Prospect Park, Brooklyn, Estado de Nova Iorque, 2016. No testamento de Pieter Lefferts, o patriarca de uma família holandesa que tinha escravos: "Para o filho mais velho, a aia negra Beth é agora sua propriedade; o seu filho Jacob terá o rapaz negro Tom; o seu filho Jan terá o negro Henry. A sua filha Adriaentje terá a aia negra Neny; a sua filha Anti terá a aia negra Lies, a filha Abigael deverá comprar uma aia para si ou ficar com o rapaz negro Isaac." ©Nona Faustine
"Restam poucos vestígios. O teu corpo negro é o vestígio. A terra guarda a memória da tua existência. Tu só tens de colocá-lo lá no seu estado natural para relembrar." – Harriet Tubman, Sylvester Manor, Shelter Island, Estado de Nova Iorque, 2021. Em Shelter Island havia uma platanção onde escravos africanos e população indígena viveram trabalharam e morreram - e onde permanecem enterrados. Alguns deixaram marcas na terra: Hannah, Jacquero, Hope, Isabell, Obium, Semnie, Tammero, Oyou, Comus, Matilda.
"Restam poucos vestígios. O teu corpo negro é o vestígio. A terra guarda a memória da tua existência. Tu só tens de colocá-lo lá no seu estado natural para relembrar." – Harriet Tubman, Sylvester Manor, Shelter Island, Estado de Nova Iorque, 2021. Em Shelter Island havia uma platanção onde escravos africanos e população indígena viveram trabalharam e morreram - e onde permanecem enterrados. Alguns deixaram marcas na terra: Hannah, Jacquero, Hope, Isabell, Obium, Semnie, Tammero, Oyou, Comus, Matilda. ©Nona Faustine
"Caminha para a Liberdade, Frederick Douglass’, Church St. & Lispenard St., Cidade de Nova Iorque, 2015. David Ruggles nasceu em 1810, filho de ex-escravos, em Norwich, Connecticut. Ele ajudou Frederick Douglass e cerca de 600 outros homens e mulheres a libertar-se da escravatura.
"Caminha para a Liberdade, Frederick Douglass’, Church St. & Lispenard St., Cidade de Nova Iorque, 2015. David Ruggles nasceu em 1810, filho de ex-escravos, em Norwich, Connecticut. Ele ajudou Frederick Douglass e cerca de 600 outros homens e mulheres a libertar-se da escravatura. ©Nona Faustine
"O navio expeliu-a, como se fosse um cadáver grávido, para dentro do patriarcado" Atlantic Coast, Brooklyn, Estado de Nova Iorque, 2012
"O navio expeliu-a, como se fosse um cadáver grávido, para dentro do patriarcado" Atlantic Coast, Brooklyn, Estado de Nova Iorque, 2012 ©Nona Faustine
"Ela era o culminar de todas as coisas no céu e na terra, de tantas vezes que cá esteve antes." Seneca Village, Central Park, Cidade de Nova Iorque, 2021. Entre 1825 e 1857, antes da existência de Central Park, Seneca Village era uma zona residencial onde vivia uma comunidade predominantemente africana e afro-americana. Muitos dos residentes eram proprietários. Havia casas, igrejas, escolas nesse aglomerado urbano, assim como um cemitério - que foi "engolido" pelo Parque e pelas ruas 82 e 89. O governo de Nova Iorque tomou o território à força para construir o parque.
"Ela era o culminar de todas as coisas no céu e na terra, de tantas vezes que cá esteve antes." Seneca Village, Central Park, Cidade de Nova Iorque, 2021. Entre 1825 e 1857, antes da existência de Central Park, Seneca Village era uma zona residencial onde vivia uma comunidade predominantemente africana e afro-americana. Muitos dos residentes eram proprietários. Havia casas, igrejas, escolas nesse aglomerado urbano, assim como um cemitério - que foi "engolido" pelo Parque e pelas ruas 82 e 89. O governo de Nova Iorque tomou o território à força para construir o parque. ©Nona Faustine
"Espíritos benevolentes caminham descalços deste mundo para o outro." 2021. A última imagem do fotolivro White Shoes, de Nona Faustine, editado pela Mack Books.
"Espíritos benevolentes caminham descalços deste mundo para o outro." 2021. A última imagem do fotolivro White Shoes, de Nona Faustine, editado pela Mack Books. ©Nona Faustine
Capa do fotolivro White Shoes, editado pela Mack Books em Novembro de 2021
Capa do fotolivro White Shoes, editado pela Mack Books em Novembro de 2021