Fotografia
Nona Faustine denuncia os lugares da escravatura de Nova Iorque
White Shoes, da norte-americana Nona Faustine, contém auto-retratos da autora nos lugares onde a história da escravatura existiu e foi apagada. "Diante da câmara fotográfica, tentei sentir aquilo que essas pessoas terão sentido. Seres humanos que sabiam que eram muito mais do que escravos foram vendidos, ali, à melhor oferta."
O que é que uma pessoa afro-americana sente ao permanecer nos mesmos lugares onde se venderam homens, mulheres e crianças africanas há cerca de 150 anos? A fotógrafa afro-americana Nona Faustine quis saber. E o que sentiu não pode esquecer - não quer esquecer. O seu corpo, a sua cor, tornaram-se no único vestígio de escravatura nos locais por onde passou e se auto-retratou: locais onde se leiloavam escravos, antigos cemitérios africanos, quintas de colonos esclavagistas, cais onde os navios negreiros atracavam. Despida sobre um par de sapatos brancos, Nona dedicou nove anos à denúncia destes lugares, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, desenterrando o passado. O resultado é série fotográfica White Shoes, que a editora Mack Books editou em formato de fotolivro em Novembro de 2021.
"Agora, Water Street é uma estrada de dois sentidos ladeada de um aterro que ocupa quatro quarteirões. Há arranha-céus à sua volta." À primeira vista, aquela é apenas mais uma rua da cidade de Nova Iorque. "Perguntava-me com frequência se era aquilo que eu sentia naquele lugar que marcava a experiência de lá estar. Porque não conseguia ver nenhum vestígio da tristeza e do sofrimento que resultaram das actividades que um dia ali tiveram lugar. (...) É difícil criar algum tipo de relação com o passado devido ao apagamento." Quando se fotografou, despida, naquele lugar, "sentiu-se apenas uma mulher livre, até certo ponto". Na esquina que liga Water Street e Pearl Street estava sediada, entre 1711 e 1762, uma casa de leilão de escravos. "Pessoas escravas saíam dos barcos que atracavam nas proximidades e eram vendidas ali."
Ao retratar-se no local, Nona Faustine sentiu "medo e fascínio", escreve nas páginas do livro. "Diante da câmara fotográfica, tentei sentir aquilo que essas pessoas terão sentido. Seres humanos que sabiam que eram muito mais do que escravos vendidos, ali, à melhor oferta. Terão pensado que são muito mais do que aquilo que os olhos podem ver. Quantas mentes brilhantes foram emprisionadas, vendidas, reduzidas ao estatuto que era atribuído a um cavalo, uma mula, uma vaca? Pensei no grande potencial perdido naquele instante, nos grandes artistas, nos brilhantes académicos, escritores, filósofos, professores, arquitectos, inventores, cientistas que se perderam. Pessoas que podiam ter contribuído de formas incríveis para o desenvolvimento da sociedade."
Ao longo das 72 páginas do fotolivro, cada imagem carrega o peso das anteriores; e o corpo de Nona Faustine adquire maior carga simbólica. O silêncio daqueles lugares, que ocultam um passado sombrio, torna-se progressivamente mais incompreensível, mais incómodo. Há, também, uma lição de História em cada imagem, que é acompanhada de legendas pormenorizadas relativas aos locais que elegeu - algumas podem ser lidas nesta fotogaleria. "O meu trabalho é um tributo à minha mãe, à minha avó e bisavó."