A clarividência

O tempo que perdemos em julgamentos e avaliações pífias rouba-nos espaço à nossa própria hipótese de sermos mais felizes, mais realizados com o que temos.

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"Suster o fôlego da vida não é bom princípio" Mag Rodrigues

Sei que são muitas as vezes em que cito a americana Joan Didion com a frase: “A vida muda num instante. Num dia normal.” Didion é uma intelectual a quem a elite americana faz uma vénia e o resto do mundo acena com respeito. Há dias vi um filme medíocre escrito por ela há muitos anos, e percebi que também ela pôde ser aquela. Podemos ser muitos em momentos diversos. Quando somos bons, não é um desvio que nos define.

A vida de Didion foi marcada por duas mortes seguidas: a do marido, diante dos seus olhos; e a da filha num culminar de dor e incompreensão e várias fatalidades que pautaram a sua existência breve.

Nós damos, achamos que damos, tudo aos nossos filhos, mas depois há lugares aonde nunca chegamos. Nem dentro de nós, quanto mais a eles! Lugares obscuros que não são desembrulhados em explicações da genética ou da educação.

Sei que muito viaja para além do lógico. Se a vida fosse lógica nenhuma criança morria em vão.

As mudanças na nossa vida podem ser bruscas ou erguidas numa base racional que se mistura com a fantasia: “Um dia poderei ser aquele que…” Todos nós já nos deitámos a pensar que um dia poderíamos ir mais longe. E os que foram, sabem que um dia adormeceram mais felizes a pensar nessa equação. Não há nada de errado nisto, pelo contrário. Penso, sem conhecimento suficiente que não o da vida somada, que devemos incutir essa possibilidade aos nossos filhos. A possibilidade de ser. E nunca a improbabilidade de vir a acontecer. Suster o fôlego da vida não é bom princípio.

Salto facilmente de Didion para um biopic de Elton John, (adocicado por ele) em que uma frase singular igualmente ecoa dentro de mim (as duas frases acabarão por se ligar mesmo que eu ainda não saiba como…). Um dia, Elton John — aparentemente pouco amado pelos pais e com uma dívida de gratidão maior do que a vida para com a sua avó —, entre mortais na piscina, que eram também piruetas no abismo da vida, diz: “Chegou o momento de nos perdoarmos uns aos outros.” Em rigor, não sei se são estas as palavras mas há uma ideia clara de seguir em frente com a família apaziguada.

Como é que acabo a ligar Joan Didion a Elton John numa espécie de jukebox mental sem critério? Porque sabendo que “A vida muda num instante. Num dia normal”, é importante que se dê esse momento de clarividência, em que deixamos a pequena intriga carnívora tomar conta de nós para olharmos para um bem maior: o entendimento. Se quiserem, uma forma mais pacífica de viver.

Espanto-me, quase a fazer 50 anos, que as pessoas, as que tiveram segundas e terceiras oportunidades na vida, teimem em apontar o dedo aos outros com demasiada facilidade. Voltamos aos lugares obscuros que estão em nós e que teimamos em não querer habitar, visitar, espreitar sequer?

Se há vontade maior na vida que quase sobrepõe a racionalidade (até os animais sem querer a procuram) é a vontade de tentar a felicidade. A felicidade há muito que deixou de caber num manual, numa fotografia, numa epístola, num cofre. Todos nós a procuramos. Eu na minha compostura que tem debaixo de olho a Didion ou o Elton John, ou a minha filha nas suas unhas mínimas pintadas de preto e o cabelo descolorado.

O tempo que perdemos em julgamentos e avaliações pífias rouba-nos espaço à nossa própria hipótese de sermos mais felizes, mais realizados com o que temos. Só atingiremos a verdadeira maturidade quando deixarmos de condenar o outro e a forma como ele se aproxima da felicidade.

Ao dedo apontado devemos acenar com uma ideia clara: “A vida muda num instante. Num dia normal.”

A fragilidade e o imprevisto (que mais tarde ou mais cedo nos visitam) deviam ser a base que nos faz tentar essa aproximação a uma existência sem pontas bicudas: são essas que na mediocridade de um julgamento pouco corpóreo se prolongam no tempo e mais nos magoam.

Que acabe sempre por chegar esse dia em que nos perdoamos uns aos outros.

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