Depois do desconfinamento, o medo de voltar ao mesmo

Embora esteja mais do que feliz, tenho de te confessar que tenho medo do que aí vem. Não é do vírus, estou vacinada, nem tão pouco da ínfima possibilidade de apanhar uma forma light da doença; o meu medo é de voltar ao mesmo.

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@designer.sandraf

Querida Filha,

Começámos as Birras no início do I Confinamento (mais dia, menos dia, vamos passar a usar esta grafia, assim ao estilo de I e II Guerra Mundial) e, finalmente, chegámos ao grande desconfinamento (ainda que cheio de hesitações e contradições), por isso temos todas as razões para celebrar.

Mas, embora esteja mais do que feliz, tenho de te confessar que tenho medo do que aí vem. Não é do vírus, estou vacinada, nem tão pouco da ínfima possibilidade de apanhar uma forma light da doença; o meu medo é de voltar ao mesmo, Ana, que a tua mãezinha, a avó dos teus filhos, afinal não tenha aprendido nada com esta pandemia.

Lembras-te de como numa das nossas primeiras cartas me falavas do alívio que sentias por estares obrigada por lei a ficar em casa, de como te libertava da culpa de não ir por o carro na oficina, oficialmente autorizada a parar? Eu senti o mesmo. Não só percebi como a minha agenda sobrelotada na realidade me pesava (porque senão como podia sentir tamanho alívio ao ver-me livre daqueles compromissos?), como confirmei a minha vocação de ermita — o prazer do silêncio, da casa vazia, do puzzle feito a meio do dia, do passeio na serra de Sintra, a que me pude entregar sem a culpa de estar a falhar noutros campos. E se é claro que me custou a separação de filhos e netos, foi importante perceber que vocês não se perdiam sem mim e que mesmo tu, com os quatro miúdos, davas bem conta do recado — beliscou a minha omnipotência, evidentemente, mas soube-me bem.

Então, por que é que o decretado “regresso à normalidade” me perturba, se aos 61 anos tenho a enorme sorte de poder escolher o ritmo de vida que desejo? Hum, porque constato que continuo a precisar que me “autorizem” a abrandar. Que continuo a ter dificuldade em dizer que não, inclusivamente àqueles que me são mais próximos, que tenho uma compulsão que me faz sentir sempre em falta com alguém (não liguei, não visitei...), que odeio imaginar-me desmancha-prazeres quando preferiria ficar a jardinar a ir almoçar fora, quando escolheria um sofá e um livro a uma festa de anos...

E, querida filha, agora até me roubaram a expectativa de um “isolamento profiláctico”, que continuava disparatadamente a vigorar mesmo para os vacinados — Ana, roubaram-me a miragem de duas semanas sem doença e com uma desculpa de papel passado para ficar em casa a entreter-me com estas birras e outras.

Pronto, já desabafei, e não, não sou agorafóbica, os agorafóbicos não adoram centros comerciais.

E tu, como é que estás a reagir ao semáforo verde — a propósito, já puseste o carro a arranjar?


Querida Mãe,

Eu, Ana Stilwell, sem nenhuma autoridade de especial, venho por este meio autorizar ____________________ (deixo em branco para se outra avó ou mãe precisar de preencher), a não ter de usar todo o seu tempo livre a ajudar com os netos, ou a resolver a vida dos filhos. Aliás, fica expressamente proibida, de passar mais de uma hora por dia a ponderar que futuro vão ter, ou a catastrofizar cenários.

______________ fica, por este meio, obrigada a respeitar o seu próprio corpo, a aceitar que uns dias lhe apetece socializar e ter uma vida frenética e, noutros, quer ver séries deitada no sofá. Autorizo a que, sem restrições, sem medos ou culpas, oriente a sua vida pelo princípio do prazer, sem ter medo de que se ceder ao que lhe apetece, ao que lhe dá conforto naquele momento, nunca mais seja capaz de enfrentar obstáculos.

Regista-se que sentirá culpa quando não fizer as coisas ao máximo da sua capacidade, mas que a aceitará com a consciência de que baixar as expectativas, lhe permitiu dar tempo e espaço a tantas outras coisas de que teria de prescindir se estivesse determinada a tentar encontrar a perfeição. Com a continuação do tratamento irá progressivamente sentir estes benefícios.

Sem outro assunto,

Ana Stilwell


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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