Gestos delicados no FEST 2021

Deslocados do ritmo habitual do cinema que aponta para a fragilidade e a expõe visualmente no ecrã, Lamb e Poppy Field revelam um outro lado da moeda da luta identitária e do eco-terror dos nossos tempos nos baptismos entre as personagens e a ríspida fricção com o mundo em seu redor.

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Poppy Field

Há filmes que são casas ou construções de casas. E depois há outros, que permanecem escondidos, nas margens destes, e que fazem o impensável. São peças tonais, concentradas no estudo das personagens vulneráveis que têm no seu centro, as quais usam para contornar uma certa desvitalização do cinema mais nostálgico. Mas falar de filmes que falam nos seus sussurros e que, tal como contos literários, têm pontos de entrada que não se anunciam, fazem-nos lembrar que o cinema também é este toque sensível de criar uma nova língua com a qual podemos reaprender a sentir.

O FEST, festival conhecido pelas suas masterclasses e training ground, onde reúne uma impressionante comunidade de profissionais de cinema todos os anos, leva à cidade de Espinho dois primeiros filmes de realizadores que são exemplos disto mesmo. Deslocados do ritmo habitual do cinema que aponta para a fragilidade e a expõe visualmente no ecrã, Lamb e Poppy Field, filmes que competem pelo Lince de Ouro na competição de longas-metragens de ficção este ano e que serão exibidos no próximo dia 9 de Outubro, revelam um outro lado da moeda da luta identitária e do eco-terror dos nossos tempos nos baptismos entre as personagens e a ríspida fricção com o mundo em seu redor.

Lamb, de Valdimar Jóhannsson, venceu o prémio originalidade da Competição Certain Regard no último festival de cinema de Cannes e é fácil entender porquê. Só pensar nele pede um outro rever. Tal como o título indica, o primeiro filme do realizador islandês é sobre um cordeiro recém-nascido numa idílica e isolada quinta e o papel transformativo que este tem na vida do casal que nela trabalha. Depois de um nascimento peculiar, a chegada de um cordeiro com o corpo de um humano actua na rotina do casal como uma pista de brutalidade que vem enevoar uma estranha calma que cobria os seus dias. O animal-criança (ou será criança-animal?), que bem podia ser protagonista de uma folk tale malévola, começa a ser educado como se fosse fruto da relação do casal que, até conhecimento do contrário, não tinha filhos. Mas há uma força que os condena e parece querer contagiar o calor que dentro da casa se começa a fazer sentir. “O que raio se passa aqui?”, ouve-se a uma determinada altura da boca do irmão do protagonista que está ali de passagem e que nos confirma que o que temos visto, até então, não é de alguma forma alucinatório. “Felicidade”, o segundo responde-lhe. Em nenhum momento algum deles se pergunta se Ada, como se assim lhe chamam, lhes pertence.

Do outro lado do espectro, em Poppy Field, filme romeno de Eugen Jebeleanu, cuja estreia mundial se deu no caricato festival de cinema Tallinn Black Nights, também há um momento onde o filme se transforma numa demonstração de elevada voltagem. Um polícia de intervenção romeno, homossexual, precisa de viver só dentro de si mesmo. Chamado a uma sala de cinema, invadida por fanáticos religiosos durante a projecção de um filme que explora o lesbianismo, Cristi vai deparar-se com um conhecido que ameaça expor a sua homossexualidade e sente a necessidade de usar a força para encobrir o encontro. Dentro do violento submundo hierárquico e machista que é a força policial, Jebeleanu parte de eventos reais de sessões de filmes interrompidas por activistas cristãos ortodoxos na Roménia em 2013 e 2018 de filmes The Kids Are All Right e 120 Batimentos por Minuto, respectivamente, para colocar nos ombros do seu personagem uma pluralidade de vozes que ecoam um grito de mudança que o país continua a abafar. Em nenhum momento se chega a uma catarse.

Ambos representações de paisagens aterrorizadoras, imóveis, uma literal e outra figurativa, os dois filmes apontam para a dramatização daquilo que faz o humano quebrável, falível. O casal que protege a sua filha independentemente de ela ser, na sua natureza, selvagem e pertencente a um outro mundo, e o homem que faz uso da brutalidade policial que não lhe pertence por medo de se tornar alvo de ostracização. E enquanto Jóhannsson cria uma metáfora que tem um formato físico para o qual podemos olhar e através do qual é possível penetrar o reino de solidão da perda, mas também observar a força da natureza sobre o humano, Jebeleanu cria essa fisicalidade através de momentos isolados que preenche com diálogos intimistas, estendidos por cima de um silêncio que dá um sentido às coisas, especialmente no que diz respeito à empatia e compreensão humanas.

Dito isto e por outras palavras, ao evocar o ridículo, Lamb atinge o coração do que é mais inerentemente humano. A sinistralidade está ali para ser compreendida e nunca avaliada. Poppy Field, por outro lado, dá esse toque brutal na realidade seguindo o que o Novo Cinema Romeno tem tentado fazer, mas sem símbolo narrativo necessário. O horror atmosférico e o sentimento de clausura sente-se sem se ver, enquanto o filme se torna num diário das ondas da opressão, impossível de relatar com precisão. Em nenhum momento ouvimos Cristi bravar aos céus por esta injustiça que o impede de ser ele mesmo. Mas vemos, com o crescimento da felicidade cega em Lamb e a descida para um inferno identitário em Poppy Field quão reveladores são os vaivéns de hesitação, contemplação e da acção repentina que contradiz os outros dois. Tudo é destrutivo, o fazer e o nada fazer em dois delicados filmes que falam entre si sobre o outro.

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