Canadá
“Genocídio cultural”: Canadá revela o passado negro das escolas cristãs para crianças indígenas
Cerca de 150 mil crianças indígenas foram, ao longo de mais de um século, separadas das suas famílias e internadas em escolas cristãs, no Canadá, onde sofreram abusos físicos, sexuais e desnutrição. As valas comuns encontradas nas imediações dessas instituições, contendo mais de 1300 corpos de crianças não identificadas, revelam um "legado terrível" cujas dimensões começam a ser, lentamente, compreendidas.
No Canadá, entre 1840 e 1996, cerca de 150 mil crianças indígenas foram separadas, à força, das suas famílias e internadas em escolas cristãs financiadas pelo Estado, com o intuito de cometer aquilo que o órgão oficial canadiano Truth and Reconciliation Commission (TRC) apelidou, sem rodeios, de "genocídio cultural" dos primeiros povos.
Durante décadas, de acordo com o relatório do TRC, no interior dessas instituições – que fizeram parte de uma tentativa de extinguir a população aborígene como uma entidade legal, social, cultural, religiosa e racial no Canadá –, várias gerações de crianças sofreram abusos físicos, sexuais, desnutrição. Pelo menos 6 mil crianças morreram em escolas deste tipo, entre 1876 e 1996, mas os números poderão ser muito superiores, uma vez que a contagem de mortes de estudantes indígenas foi, oficialmente, interrompida em 1920, devido à elevada taxa de mortalidade que se verificava, que era entre duas a cinco vezes superiores a escolas não-indígenas. Estima-se que situações de negligência, de doença e de suicídio tenham contribuído para a perda de vidas.
Em Junho de 2021, no perímetro da antiga escola indígena de Marieval, na província canadiana de Saskatchewan, foram descobertos os restos mortais de 751 crianças em valas comuns. Um mês antes dessa descoberta, 215 cadáveres de crianças, algumas com apenas três anos, foram encontrados nas imediações da Kamloops Indian Residential School, então a maior escola do sistema de escolas residenciais canadiano. Até à data, mais de 1300 corpos enterrados não identificados foram descobertos nas imediações de antigas escolas, motivando a revolta popular, que exige o apuramento de responsabilidades sobre o passado colonial do Canadá.
No interior das escolas, as crianças eram forçadas a adoptar outro nome próprio, estavam proibidas de falar a sua língua materna e eram convertidas ao cristianismo. Sue Caribou, ex-estudante de uma destas escolas, contou ao The Guardian, em 2015, que era forçada a tomar banho de água gelada todas as noites, "muitas vezes após ter sido violada". A mulher de 50 anos afirmou ter sido, até 1979, vítima de abusos físicos e sexuais por parte de clérigos na escola Guy Hill, na província de Manitoba, onde era tratada por "cão" e forçada regularmente a comer vegetais podres. "Tínhamos de nos manter em sentido, com soldados, enquanto cantávamos o hino nacional, caso contrário seríamos espancados", recordou.
George Manuel, um dos precursores do movimento indígena canadiano, foi aluno de uma dessas escolas. No seu livro autobiográfico, Brotherhood to Nationhood, Manuel escreveu que "todos os estudantes indígenas cheiravam a fome". O subfinanciamento e sobrelotação das instituições era frequente, o que potenciava a incidência de surtos de sarampo, tuberculose, gripe e outras doenças contagiosas. Um relatório de 1935, relativo a uma das instituições, dá conta de 285 estudantes distribuídos por apenas cinco dormitórios, situação que tornava impossível o isolamento de doentes.
A última escola residencial encerrou portas em 1996. O Governo canadiano mantém em curso a investigação sobre a extensão dos danos causados pelas instituições, através do organismo oficial TRC, com o objectivo de apurar o número de vítimas mortais e as identidades dos sobreviventes das atrocidades cometidas. 509 milhões de euros de compensações serão distribuídos por milhares de ex-estudantes aborígenes vítimas do que Trudeau chamou de "legado terrível".