Ciência em julgamento, vidas em risco
A minha reflexão não se reporta a questões discutíveis e motivadoras de debates abertos na ciência, mas sim, a afirmações e alegações que são comprovadamente falaciosas, e como tal prejudiciais à saúde.
Não sei se estão a par, mas a ciência está a ser julgada em tribunal e atacada por um alegado processo de difamação. Isto preocupa-me e devia preocupar-nos a todos. Em causa está o processo que o empresário Pedro Choy apresentou na justiça contra o médico João Júlio Cerqueira. O direito ao bom nome de todos os cidadãos e a gravidade de acusações difamatórias são inquestionáveis, mas mais grave é se as acusações forem verdadeiras e, como tal, têm de ser dissecadas, esmiuçadas e balizadas do ponto de vista científico, porque é a ciência que está em julgamento e são as vidas das pessoas que estão em risco.
As fundações da nossa vida em comum, dependem em boa medida da valorização da ciência e inevitavelmente da condenação irrepreensível da pseudociência. “Uma pseudociência é qualquer tipo de informação que se diz ser baseada em factos científicos, ou mesmo como tendo um alto padrão de conhecimento, mas que não resulta da aplicação de métodos científicos” — esta é uma das definições resumidas.
Este julgamento deveria ter visibilidade nacional e internacional, mais ainda, numa altura em que o conhecimento científico nunca foi tão necessário, e as suas agressões são tão frequentes. Os ataques por megafone à nossa nação têm a sua ideologia na pseudociência. Isto é um assunto sério. Quando, no Brasil, vemos estádios de futebol cheios de pessoas que acreditam com toda a força que o Fernão de Magalhães deu a volta a uma folha de papel, nós rimo-nos. Mas quando vemos certificados falsos de vacinação à venda por estes radicais da anarquia, temos de compreender o fenómeno e pôr a lei ao serviço de todos. O cidadão não ligado à saúde não pode, não consegue, não tem de estar informado sobre todos os campos da medicina e, como tal, vai estar vulnerável à informação propagada. E se esta for falsa, se for indutora de comportamentos que podem acarretar riscos para o próprio e para o todo, precisamos de nos defender enquanto sociedade.
Em 1971 aquando de uma visita à China por parte do presidente Nixon, dos EUA, um jornalista americano teve de ser submetido à remoção do apêndice por apendicite aguda. Reza a história que a anestesia foi feita com acupunctura. Há livros de medicina “convencional” que relatam este feito. Para um médico anestesiologista como eu seria interessante estudar este caso, mas não há nada a estudar porque não é verdade. Ou seja, é mentira, é uma “charlatanice”. A anestesia aplicada foi a convencional e foi acrescentada a acupunctura para o tratamento da dor pós-operatória, e também medicamentos analgésicos usados em todo o mundo, para não causar um conflito entre potências.
O empresário Pedro Choy alega fazer anestesias com agulhas e tratamentos oncológicos com picadas, entre outras coisas que me parecem inverosímeis à luz dos meus conhecimentos científicos. Ou ele consegue provar que o faz em tribunal, ou as alegações do médico João Cerqueira têm de ser equacionadas como verdadeiras, mesmo que eu não me reveja na acidez dos seus adjectivos. O que está em causa é muito mais do que o bom nome de um cidadão e empresário, é a saúde de todos nós, do hoje e do amanhã, assim como a credibilidade da ciência e a perigosidade da pseudociência.
Queria deixar claro que não ponho tudo no mesmo saco, nem todos na mesma imoralidade. Há áreas cinzentas, há pessoas incríveis em todos os lados da barricada, e há questões que nos deixam na margem da dúvida, e até serem esclarecidas aceitam-se todos os argumentos que respeitem o método científico, como se vê na saudável interacção de muitos bons terapeutas com a medicina “convencional”. A minha reflexão não se reporta a questões discutíveis e motivadoras de debates abertos na ciência, mas sim, a afirmações e alegações que são comprovadamente falaciosas, e como tal prejudiciais à saúde, como me parece que estão em causa neste julgamento. A beleza da cultura é a diferença, e a beleza da ciência é a igualdade sustentada na prova e não na crença ou subjectividade da interpretação de cada indivíduo.
Chamar a um tipo de crença medicina “alternativa” é como considerar que há uma verdade “alternativa”. Só há uma verdade e só há uma medicina que é a que funciona, a que está provada pelo método científico e foi validada com solidez pela comunidade cientifica. Se funciona, entra para a medicina, se não funciona e já foi provado que não funciona como muitas das ditas “alternativas” chama-se mentira, “charlatanice” e com um prejuízo muito grave para o bolso e para a saúde das pessoas. Acreditar com muita força que ao esfregarmos as mãos na terra nos estamos a prevenir da covid é tão ou mais irracional que o terraplanismo, com a agravante que afasta as pessoas das medidas que efectivamente previnem a doença e salvam vidas: vacina, lavagem de mãos, distanciamento e máscaras.
Nada contra nem a favor de ninguém, mas este julgamento interessa-me porque é, acima de tudo, a ciência que está em julgamento, e as vidas dos nossos concidadãos que estão em risco.