A ditadura da felicidade

A pressão é, fundamentalmente, a de “ser feliz” ou, como referem Edgar Cabanas e Eva Illouz, no seu livro A Ditadura da Felicidade, a demanda da felicidade como “critério de referência de uma vida bem vivida, tanto moral como psicologicamente”

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Há pouco tempo, perguntava aos meus alunos do secundário: “Qual é a razão da vossa ansiedade?”. Um aluno respondeu, em tom assertivo: “É a sociedade, professor! É a pressão da sociedade!”. Retorqui: “Mas que pressão é essa? E quem está a exercer essa pressão, exactamente? Diga nomes. A sociedade é uma entidade muito vasta.” Ao que o mesmo aluno replicou, exasperado: “É a sociedade, professor!”.

O aluno não conseguiu identificar os agentes responsáveis pela pressão que sentia. Legitimamente. É que a pressão a que se referia está de tal forma disseminada que se torna difícil discriminar responsabilidades. E é crível que isso poderá significar que somos todos, consciente ou inconscientemente, em maior ou menor grau, vítimas dessa pressão e produtores da mesma. A minha apreensão face aos efeitos dessa pressão decorre de verificar que nunca, como agora, me deparei com tantos alunos com transtornos de ansiedade e síndromes do pânico.

A pressão é, fundamentalmente, a de “ser feliz” ou, como referem Edgar Cabanas e Eva Illouz, no seu livro A Ditadura da Felicidade, a demanda da felicidade como “critério de referência de uma vida bem vivida, tanto moral como psicologicamente”. Mais: é a pressão para que a felicidade pessoal (com tudo o que traz de auto-realização e auto-satisfação) corresponda ao culminar de um processo de auto-aperfeiçoamento contínuo, infindo e, por isso, extenuante (seja qual for a medida de satisfação ou de insatisfação, tem-se sempre necessidade de mais felicidade), em que cada um deve “lutar” consigo próprio e com as suas circunstâncias, para florescer (por oposição a definhar). Estes “buscadores obcecados da felicidade” são felicicondríacos.

A demanda permanente da felicidade baseia-se, pois, numa narrativa de incompletude funcional, ontológica e existencial, que transformou os cidadãos em “psidadãos”, isto é, cidadãos das sociedades neoliberais, caracterizados por uma subjectividade individualista e consumista que “faz deles clientes para quem a busca da felicidade se tornou instintiva, com base na convicção de que a sua plena funcionalidade e o seu pleno valor estão fortemente associados à sua contínua auto-optimização por meios psicológicos”. E ninguém parece notar o paradoxo: é que, tendo por vocação primordial criar um Eu mais realizado e desenvolvido, a felicidade (ou o processo de se ser feliz) tem de gerar, concomitantemente, uma narrativa em que a irrealização e a incompletude são os traços que definem permanentemente o Eu. Pelo contrário, o paradoxo é reforçado pela dinâmica do “mercado da felicidade”, onde operam (e proliferam) prescritores de felicidade: autores de livros de auto-ajuda, coaches, oradores motivacionais, influencers e youtubers.

Para esta narrativa da demanda da felicidade, que transforma o sofrimento e o fracasso em sentimentos vergonhosos e em sinais de uma psique mal domesticada ou incompetente, muito contribuiu a psicologia positiva e os seus defensores, tendo, como leitmotiv, a ideia de que a felicidade é menos uma coisa e mais um tipo de pessoa: individualista, resiliente, optimista, automotivada, emocionalmente inteligente. Portanto, a pobreza ou a riqueza, o fracasso ou o êxito são escolhas nossas, pois dependem do esforço e da persistência de cada um. Depende, enfim, do pressuposto meritocrático que postula que quem não instrumentaliza a adversidade como motor de desenvolvimento pessoal é suspeito e culpado de querer e merecer a sua própria infelicidade. Na esteira de Cabanas e Illouz, a “indústria da felicidade” confere legitimidade à crença de que não existem condicionantes estruturais, mas, apenas, limitações psicológicas, em suma, que não existe sociedade, mas, antes e só, indivíduos. Obriga-nos a ser felizes, mas põe em nós o ónus da culpa, se não formos capazes de viver uma vida bem-sucedida.

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