Os pássaros da Amazónia voaram até à Sertã, num pedido de socorro

Uma exposição e um livro, Silêncio, os Pássaros Lêem em Voz Alta, a lembrar que a Amazónia está em perigo. Nós também.

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Cristina Taquelim no lançamento do livro de Maurício Leite Cortesia Vitorino Coragem

“O desmatamento do Brasil é uma coisa assassina. Por cada árvore que cai, um pássaro perde a sua casa, um animal perde o seu alimento, o homem perde a sua protecção”, explicou o arte-educador Maurício Leite ao PÚBLICO após o lançamento do livro Silêncio, os Pássaros Lêem em Voz Alta, rodeado de aves de madeira trazidas da Amazónia e por lá construídas por artesãos. “Quis dar voz aos invisíveis do meu país, os índios da Amazónia”, acrescentou.

A exposição irá permanecer até ao final do mês de Julho no Convento de Santo António, na Sertã, integrada na Maratona de Leitura — 24 Horas a Ler, que termina na noite deste sábado e que teve como lema Palavra ao Planeta.

“Acho que o mundo inteiro devia olhar mais para a questão amazónica. Nós, brasileiros sozinhos, neste momento, não temos voz, nem espaço nem ouvidos do outro lado: aqui. Para que esse desmatamento pare e que os incêndios também terminem”, afirmou o “homem da mala azul”, em que transporta livros e histórias para os sítios mais inacessíveis. E acrescenta: “Os incêndios também acontecem aqui em Portugal. Isto não é um problema lá da longínqua amazónica, é um problema do mundo. De todos nós.”

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Maurício Leite Cortesia Vitorino Coragem

Estava planeado que Ivan Teixeira, um dos artesãos destes pássaros, estivesse presente e os construísse ao vivo, em buriti (uma madeira macia). Não foi possível devido às restrições da pandemia. “Queria que as pessoas daqui tivessem oportunidade de falar com um amazónico verdadeiro (embora eu também o seja), mas para conhecerem alguém que vive mesmo lá no interior. Não foi possível”, lamenta.

A curadora da exposição, Mafalda Milhões, juntamente com a contadora de histórias Cristina Taquelim escrevem na Carta de Voo, nas páginas iniciais do livro: “Dos mais de 3500 brinquedos, objectos, bichos em buriti (matéria nobre do cerrado Brasileiro) que o Maurício foi recolhendo ao longo da vida, reunimos apenas alguns pássaros. Serão eles a dar voz a este poemário em defesa da biodiversidade. Serão os pássaros a dar voz aos que, na Amazónia, persistem em travar o fogo cuidando do seu buriti, usando-o de forma sustentada para se exprimir artisticamente, para deixar o seu legado e contar dos seres que habitam as suas matas e rios.”

E recordaram no lançamento: “De cada vez que se abria uma caixa do Maurício, era uma surpresa.”

Fabricar casas para fugir de casa

Silêncio, os Pássaros Lêem em Voz Alta reúne poemas de mais de 30 autores, desafiados a escrever a partir da palavra “pássaros”. Alguns estiveram presentes no lançamento. “Recebemos muitos sins. Este livro é um exercício de confiança e juntou pessoas experientes e inexperientes”, disse também ilustradora Mafalda Milhões, que agradeceu a todos, fazendo uma referência especial a Cecília Oliveira, que se ocupou da fotografia em condições muito limitadas devido ao confinamento.

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Pela voz de Cristina Taquelim pudemos escutar o que Maurício escreveu sobre si próprio, Em Busca de Um Lugar para Morar, de que deixamos aqui o excerto inicial: “Houve um período da minha vida, na casa dos meus pais, em que as tardes se anunciavam inquietas. Era uma casa feliz, mas em certas horas todos éramos tocados pela mágoa e pela dor. Lembro-me que eu ainda não era um jovem, mas já não era uma criança e percebia como a minha mãe ficava tristonha e nervosa quando via o meu pai voltar para casa, com os passos bambos. Como a ostra que no incómodo da dor, fabrica a pérola, eu comecei a inventar casas para fugir de casa. Levava os meus dois irmãos mais novos para um longo passeio. No final da nossa rua, havia um campo aberto e uma lagoa com águas rasas, claras e mansas. À volta da lagoa, muitos pés de jatobá, grandes árvores de generosas sombras onde eu construía, para mim e para meus irmãos, casas de paz para a gente morar. Os meus irmãos que eram pequenos gostavam que eu fabricasse casas para fugirmos de casa. Com folhas e frutos da mata, raízes e galhos secos, coquinhos, capim, areia, pedras, eu construía casas para morar.” Ainda não deixou de o fazer, como lhe recordou a irmã, muitos anos mais tarde.

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Lançamento do livro com Ana Sofia Marçal e Mafalda Milhões Cortesia Vitorino Coragem

A Maratona da Leitura tem mais duas exposições: Amar à Vista, com as ilustrações do livro escrito e ilustrado pelo contador de histórias Jorge Serafm (Biblioteca Municipal Padre Manuel Antunes) e Onde Está La Realidade, do fotojornalista Ângelo Lucas e a repórter Isabel Gaspar Dias, que numa viagem ao México ficaram a conhecer as contradições da selva Lacandona. “Chiapas é o mais pobre dos 32 estados mexicanos e um dos que tem mais indígenas – os mais pobres dos pobres. O contra-senso é que Chiapas produz 70 por cento da energia eléctrica do país, 92 mil barris de petróleo por dia, muito gás natural e ainda madeiras preciosas, café, cacau, tabaco, fruta, mel; nada disto chega à maioria da população de Chiapas”, lê-se na divulgação. A exposição pode ser vista até 15 de Julho na Casa da Cultura.

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