Fotografia
A Libéria chora, num silêncio ensurdecedor, o seu trauma de guerra
Quase 20 anos após o fim da guerra civil na Libéria, nunca se puniram criminosos de guerra, nunca se erigiram monumentos aos mortos, nunca se celebrou o fim da violência. Reaching for Dawn, de Elliott Verdier, faz o retrato de uma população que vive, de feridas abertas, uma "noite infinita".
Entre 1989 e 2003, a Libéria foi um país em guerra civil. Durante o conflito, cerca de 250 mil pessoas foram mortas, milhares foram mutiladas ou violadas por exércitos compostos por homens e crianças-soldado e mais de 800 mil ficaram desalojadas. Passados quase 20 anos do final do conflito, “o país chora em silêncio o seu trauma”, refere o fotógrafo Elliott Verdier, autor do projecto Reaching for Dawn, desenvolvido entre 2018 e 2019 na “terra da liberdade”.
"Lembro-me que nos levantámos uma manhã e, antes de abrirmos a porta, ouvimos muito barulho lá fora, gente a gritar. Quando saímos eles disseram 'Viemos para vos libertar'. Estavam armados." As palavras pertencem a uma das vítimas do conflito, uma das sete entrevistadas pelo fotógrafo francês e que estão impressas nas páginas do fotolivro que lançou recentemente sob a chancela da Dunes Editions. Verdier recolheu os testemunhos de sete vítimas e de sete perpetradores, que hoje convivem lado a lado no país onde os tribunais nunca puniram crimes de guerra, “onde nunca se erigiram monumentos aos mortos, onde nenhum dia é dedicado à celebração do seu fim”.
Os exemplos de impunidade são imensos, mas alguns são gritantes. Quando, a 9 de Setembro de 1990, o "senhor de guerra" Prince Johnson torturou durante 12 horas e assassinou o então presidente Samuel Doe diante de câmaras de televisão, muitos pensaram que ele viria, um dia, a pagar por esse crime; porém, hoje Johnson não só vive em liberdade como é senador no mesmo país. Verdier contactou com um dos homens que esteve presente durante o assassinato, que lhe descreveu o sucedido. “Disse-lhe: ‘Porque mataste a minha mãe e o meu pai, vou matar-te a ti’. Eu fui um dos que teve na mão a sua orelha.” A orelha a que se refere era a de Samuel Doe, que Johnson cortou enquanto bebia uma cerveja diante das câmaras. “As pessoas têm de lidar com o trauma sozinhas, ao mesmo tempo que convivem com os perpetradores, que seguem impunes”, lamenta o francês.
Esse silêncio ensurdecedor, que o fotógrafo traduz por noite infinita – presente simbolicamente nas fotografias que captou em grande formato –, “nega [à população] a possibilidade de reconhecimento social ou de memória colectiva dos massacres”. Verdier recorda uma das conversas que teve com duas amigas que se sentavam diante da porta de casa. “Uma delas fugia sempre às minhas questões. Passado muito tempo de conversa, quando finalmente se abriu, irrompeu em lágrimas e partilhou ter sido vítima de violação em grupo – o que era muito comum durante a guerra. A amiga dela não tinha ideia de que isso lhe tinha acontecido. As pessoas não falam sobre o seu trauma, mas senti que sentiam algum alívio por poderem partilhar as suas histórias com alguém que vem de fora.”
A cultura da violação, refere Verdier, continua muito presente na sociedade liberiana. “Não é um país onde se corra risco de morte, mas é tenso. Senti-me quase sempre seguro, excepto em lugares expressamente perigosos que optei por visitar.” Um desses foi um cemitério ocupado por ex-crianças-soldado, hoje toxicodependentes, no centro da capital, Monróvia. “Contaram-me que retiraram os caixões das sepulturas com as próprias mãos, para poderem dormir e consumir [drogas] lá dentro”, recorda Verdier. A imagem número 16 desta fotogaleria descreve um grupo de três jovens junto a uma dessas moradas improvisadas. “Foi um dos lugares mais perigosos onde estive na minha vida. Nem a polícia vai lá. Mas senti que era importante visitar pela carga simbólica: são pessoas que vivem entre os mortos, no lugar deles.”
Andar munido de uma câmara de grande formato foi uma vantagem, observa o fotógrafo. “Percebe-se imediatamente que não sou um turista a fotografar, mas sim alguém que se interessa pelo que está a observar. Assim, muitas vezes, as pessoas aproximam-se de mim já com o objectivo de partilhar algo comigo.” O mesmo já tinha sucedido quando, em 2016, visitou o Quirguistão para o projecto Khyrgystan: a Shaded Path, que pode ser revisto também no P3.
Outro dos aspectos que impressionou o francês foi a “fortíssima presença da cultura norte-americana em todo o país”. Por um lado, não foi surpreendente, uma vez que os Estados Unidos da América, em conjunto com a Sociedade de Colonização Americana, fundaram o país em 1822, com o intuito de esse ser o local de recepção de escravos libertados no país. A independência da Libéria – assim baptizada por ser o local onde ex-escravos poderiam ser livres – só chegou em 1847, mas a cultura norte-americana permaneceu. “Ninguém na Libéria quer migrar para a Europa, mas sim para os Estados Unidos”, refere Elliott Verdier.