O transtorno
Às vezes vale a pena libertarmo-nos da rotina que nos dá um aparente confortozinho e nos torna velhos antes do tempo, sentados no sofá à espera que o tempo nos apanhe.
Todos os dias chegava ao trabalho e a mesma mulher, à mesma hora, mexia a mesma chávena, as mesmas vezes. Ainda hoje ouço o tilintar da colher na xícara. Era uma xícara embora ela não o dissesse. Ela cumpria este ritual diário na casa de banho e eu ficava a ouvi-la e a pensar na razão que a levava todos os dias a fazer aquilo.
Um dia, sentada no sofá à espera da minha hora, percebi que os pequenos gestos da grande rotina nos fazem sentir seguros e então concluí que nos tornamos velhos não pela passagem do tempo mas pelo receio que nos roubem os hábitos de sempre. Resistimos à mudança temendo que ela nos tire o chão. O que é estranho é não nos cansarmos do barulho diário e impossível da xícara.
Muitas vezes desarrumei a minha vida. E perdi o chão para o ganhar depois. No fundo, descobri já crescida, ganhamo-nos em cada pedaço que se perde. Aquilo que julgávamos irrecuperável é mais uma camada acrescentada às mil e uma que já tínhamos. Não me queixo do que juntei. Entre perdas e dores.
Deixem-me voltar à mulher. Teve sempre a mesma idade até quando foi realmente nova. Apanhava o mesmo autocarro, levava o mesmo saco de compras e eu quase me arrependo de não a ter seguido numa ida ao supermercado para ver se poderia hesitar perante a tentação da prateleira que oferecia a novidade. Talvez ela sucumbisse à tentação do champô novo e fosse feliz para o trabalho com o cabelo diferente para justificar aquela compra. Nós é que não notávamos mas essa era a pequena grande alegria da sua vida. Depressa o champô novo se tornaria no champô de sempre para que a novidade não a transtornasse. A novidade pode arruinar uma vida de certezas.
O som da xícara vive comigo até hoje. Talvez por me ter feito ver que esse aparente conforto das coisas certas, muitas vezes nos rouba o brilho do que se revela novo. E o novo, pode ser o autocarro que se perde para dar lugar a outra viagem, com outros ocupantes, com outro condutor, com outra bagagem.
Um dia, essa mulher da xícara que fazia uma chinfrineira viu a sua secretária ser desarrumada por um de nós. Nunca eu soube quem terá sido, mas qualquer um de nós desejava no fundo desarrumar-lhe a vida, revolver-lhe os sacos de compras, empatá-la para ela perder o autocarro da hora certa, entornar-lhe um creme hidratante novo. Fazer qualquer coisa por ela que não fosse a certeza baça da sua rotina.
Um de nós deixou a secretária dela desarrumada. Talvez umas migalhas? Uma caneta besuntada de iogurte? Uma coisa que para ela terá roçado a infâmia, a provocação, o ultraje.
Na manhã seguinte ao ocorrido, cheguei ao trabalho e um papel, em jeito de comunicado, anunciava o gesto grotesco, a audácia do meliante que lhe virara a vida do avesso com umas migalhas a mais. Naquele texto ela exprimia a raiva de décadas, talvez a raiva dos autocarros que perdera a vida inteira, as compras que nunca tinha feito por temer a tentação, a xícara de que nunca se livrou por afecto. Havia sobretudo ódio naquele recado para todos. “Vocês podem estar à vontade, mas não estão à vontadinha.”
Lembro-me desta frase sinistra de uma mulher por quem a vida passara sem deixar grande rasto. Li o recado com o som mental da xícara em fundo. Nunca mais a vi da mesma forma. A raiva dela transbordava da rotina controlada.
Todos estes momentos acabam por ser valiosos. Não só para conhecermos os outros, mas para nos conhecermos a nós próprios. Porque nem todos temos de lavar a mesma xícara à mesma hora, as mesmas vezes. Às vezes vale a pena libertarmo-nos da rotina que nos dá um aparente confortozinho e nos torna velhos antes do tempo, sentados no sofá à espera que o tempo nos apanhe.
Confesso que devo ter deixado umas quantas xícaras abandonadas sem dó por aí. E muitos autocarros perdidos, muitas compras mal feitas, muitos amores que não o foram, muitos amigos que afinal eram só conhecidos.
Tantas perdas somadas, vejo brilho e não o tempo baço ou a rotina embaciada sequer. Quero-a nítida com tudo o que me traz desconforto.
Quero abraçar o novo que me angustia.
É apenas uma maneira de estar viva.