Tirem as máscaras!
Não houve qualquer informação, científica ou de outro âmbito, de que a Cultura fosse responsável por disseminar a doença.
Antes que chegue a polícia e me prendam por incitar ao incumprimento de uma das mais elementares regras sanitárias em vigor, convém já esclarecer de que trata o título: o pedido é dirigido a quem, no Governo, se disfarça com máscaras de generosidade, comiseração e solidariedade dirigidas a todos os que estão em dificuldades, desatando a dizer que “ninguém fica para trás” e que “os apoios vão chegar a todos”, inclusive aos que têm sofrido (e de que maneira!) na Cultura. Isso é a teoria, são as palavras vazias, o politicamente correcto inútil e sem significado — na prática, a situação é muito diferente e surrealista. Porque os tão propalados “apoios universais” não passam, afinal, de restritos. O tão publicitado “ninguém fica para trás” traduz-se, afinal, em “quantos mais ficarem para trás, melhor”.
Primeiro, foi preciso fechar a Cultura a sete chaves, não fosse dar-se o caso de os livros, os espectáculos, as salas de teatro, os cinemas, as bibliotecas, as actrizes, os actores, os realizadores, os músicos, os bailarinos, os artistas e todos os que directamente estão relacionados com o sector construírem cadeias de transmissão que nunca existiram. Porque não houve qualquer informação, científica ou de outro âmbito, de que a Cultura fosse responsável por disseminar a doença. Depois, houve aquele jogo do empurra entre Belém e São Bento: um a dizer que o decreto permitia que as livrarias voltassem a vender; o outro a alegar que não estava claro e nem sequer era tempo de facilitar. Preocupação com as pessoas? Zero.
Num país habituado a esquecer depressa, sobretudo quando convém a alguns, vale a pena ter memória. Vale a pena voltar a lembrar e nunca esquecer que a insensibilidade, neste caso exibida face à Cultura, já antes foi demonstrada e com outros destinatários por quem chefia o Governo: quando os incêndios nos assaltaram a alma, roubando-nos tantos iguais a nós e tanto do que nos faz falta, todos os dias, olhou para os rostos onde estava a dor, mas não os viu.
Conhecemos melhor de que matérias são feitas as pessoas em tempos de dificuldade e é isso que está a acontecer com alguns dos que integram este Executivo. Às pessoas da Cultura que precisam de ajuda, o Governo responde com CAE (a Classificação das Actividades Económicas) ou CIRS (Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares) e algarismos que é suposto serem inclusivos e só servem para excluir: 90010, 90020, 90030, 59110, 59120, 59130, 59140, 59200 ou 1314, 2010, 2011, 2019, 2012, 2013, 2014, 2015, 3010, 3019. Não se trata da ausência de regras para a atribuição dos apoios, trata-se de definir regras que possibilitem equidade e justiça para todos e não apenas para alguns. E ainda vêm com a “sonsice” do apelo ao recurso caso alguém considere que houve erro.
Quando precisamos de ajuda, não é de gente que começa por nos considerar suspeitos que necessitamos — é de ajuda! Quando estamos em dificuldades, não é de mãos que nos estrangulam que estamos à espera — é de ajuda! Quando o cerco aperta, as dívidas se acumulam e viver todos os dias custa, não é por falinhas mansas, nem por cinismos que esperamos — é por ajuda!
Fica a mensagem: acabem com os disfarces e assumam a vossa verdadeira identidade. Não é para complicar que estão no Governo — é para ajudar. O primeiro-ministro avisou que isto de cumprir as regras não é um jogo em que a polícia persegue e alguns tentam escapar. Pois bem, neste caso da Cultura também não se trata de um jogo, é a realidade: quanto mais as pessoas precisam de apoio, mais aqueles que definem as regras lhes complicam as vidas.
Com um pouco de sorte, juntando muito bem as migalhas que estão a ser negadas a tantos, talvez se possam colocar mais uns milhões no Fundo de Resolução e apoiar quem verdadeiramente precisa. Afinal de contas, qualquer país passa muito bem sem Cultura, que é “só” a sua essência, a sua identidade, aquilo que o define melhor; mas o que seria de um país sem os bancos?