Que prazer, ter um livro para ler e gostar de o fazer
O que nos conduz a um livro? A curiosidade. Já o amor à leitura é obra dos tempos. Vamos às livrarias?
Agora que as livrarias reabriram, e quando muitos já terão percebido o disparate que foi tê-las condenado à reclusão (relegando o livro para a lista das coisas não-essenciais), discorrer sobre a leitura, e os seus benefícios, voltou a ser matéria corrente. Nem de propósito, nos lançamentos mais recentes encontra-se um livro intitulado Vamos Ler. Um Cânone para o Leitor Relutante, de Eugénio Lisboa, incluído na colecção Livros Vermelhos da Guerra & Paz. E se, tratando-se de propostas para conquistar leitores relutantes, haverá quem discuta títulos ou autores sugeridos ou omitidos, há neste livro algo que transcende a “lista” dos 50 livros e 35 autores escolhidos: o processo que transforma alguém em leitor. Como se começa a ter gosto pela leitura? E como se transforma esse gosto em paixão, em saber, em conhecimento? Eugénio Lisboa, ensaísta e crítico literário que nos seus activos e profícuos 90 anos já leu muito e em vários idiomas, começa o livro precisamente por esses seus primeiros passos. No liceu, em Moçambique, na antiga Lourenço Marques (hoje Maputo) onde nasceu, tinha ele 11 ou 12 anos. “Ouvia os meus colegas mais abastados falar, com muito entusiasmo, de livros de Júlio Verne, Emílio Salgari, do famoso detective Sherlock Holmes, de Robert Louis Stevenson – A Ilha do Tesouro – e outras coisas neste género. O que eles me contavam deixava-me literalmente com água na boca.”
Não havia, porém, em casa, folga financeira para livros que não os escolares (obrigatórios) e os que lhe ofereciam “não pertenciam, nem de longe, àquela categoria apetecida”. Resultado: “Sentia, em mim, uma terrível e insatisfeita fome de leitura”. Isto numa casa sem telefone nem telefonia e muito menos televisão ou computadores, que ainda nem existiam para uso doméstico (estávamos nos anos 1940). Até que, um dia, ele descobriu um baú abandonado na garagem da casa, “entre uma imensa tralha de coisas mais ou menos sem préstimo”. E dentro dele, além de “montanhas de selos”, encontrou “dezenas e dezenas de números” de uma revista brasileira intitulada precisamente Vamos Ler! Eram exemplares volumosos, com reportagens, contos, verbetes sobre escritores do passado e do presente da época, novelas policiais e até peças de teatro. E assim se iniciou nas ansiadas leituras. “Lendo, inclusivamente, coisas, em princípio, muito acima da minha idade”. Chegando assim a Roger Martin du Gard, a Machado de Assis, abrindo outras portas: “O meu apetite andava de olho em tudo quanto era livro que me tivesse suscitado curiosidade”. Como que a navegar por hipertexto, mas sem qualquer ecrã. E lá foi chegando, aos poucos, a múltiplos autores, aos clássicos, Júlio Dinis, Herculano, Garrett, Camilo, numa lista cada vez mais rica. “Já então, eu não lia, eu vivia dentro dos livros”.
Só a experiência de Eugénio Lisboa na iniciação literária, com muitas mais peripécias do que aquelas que aqui se sintetizam, valerá a leitura do livro. Curiosamente, tal descrição traz-nos à memória uma outra, de um outro autor, Artur Anselmo, que já presidiu à Academia das Ciências de Lisboa, num livro intitulado Ler é Maçada, Estudar é Nada (Guimarães Editores, 2008). Citando o título um célebre poema de Fernando Pessoa (Liberdade, também glosado no título desta crónica), o livro procura convencer-nos do contrário: “Que ler não é maçada nenhuma, antes um prazer divino, e estudar uma actividade reconfortante para o espírito e para o corpo.” No interior, há um texto onde Artur Anselmo nos conta também a sua iniciação à leitura, que haveria de fazer dele um bibliófilo e um estudioso do livro (História do Livro e Filologia é mais uma das suas obras, datada de 2015). O cenário era outro: um liceu do Porto, nos anos 1950. Sem poder comprar novidades literárias, nas livrarias que à tarde frequentava, “esvaziava o modesto porta-moedas nos alfarrabistas” (“o que significava deixar de lanchar e voltar a pé à casa de meu tio, à Ramada Alta, onde me hospedava”). E assim ia comprando livros. Também em papelarias e mercearias, onde um dia, “na prateleira mais alta da loja”, teve “a surpresa” de encontrar “alguns livros de autores contemporâneos”: “Entre os quais José Régio, de quem viria a ser leitor fiel”. O mesmo Régio de cuja obra Eugénio Lisboa é hoje o maior especialista.
O que nos conduz a um livro? A curiosidade. Já o amor à leitura, a transformar-se depois em paixão, é obra dos tempos. Perdem, e muito, os que o não ganham. Vamos às livrarias?