Nós, a cidade e a mobilidade

Para reverter os usos do espaço público temos de desconstruir a ideia de que a mobilidade automóvel resulta de uma espécie de lei universal que rege a vida urbana. Não é verdade.

A inauguração do primeiro parque de estacionamento subterrâneo público em 1973, na Praça dos Restauradores, marcou o início de uma política de mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa assente na criação de parques de estacionamento subterrâneos. Os parques foram-se construindo, mas o problema não se resolveu. Mais parques incentivaram ainda mais o carro, agravaram o congestionamento e a necessidade de mais estacionamento. Passaram 50 anos e continuamos erradamente convencidos de que as cidades não têm futuro sem estacionamento. Os geógrafos dizem que já não há cidades, só urbanização. Mesmo que seja verdade que vivemos num mundo urbano sem cidades, a ideia de cidade no sentido da polis dos gregos resiste: espaço político onde se constrói a vida privada e coletiva.

A qualidade da vida urbana é fortemente condicionada pela acessibilidade do seu sistema de transportes. Em Lisboa e Porto, como noutras cidades, condicionou-se a organização da vida urbana ao sistema de mobilidade automóvel, que por sua vez normalizou a perceção de que o espaço atribuído ao carro é um direito moral. Na minha rua, projetada no final do século XIX, só cerca de 4 metros são passeio contra 14 metros para o carro. A situação repete-se nas ruas ao lado. Todas são ruas da estrada e, como descreve o geógrafo Álvaro Domingues num dos seus livros, “a rua da estrada é uma coisa mal-amada”. Sugiro que o leitor faça este exercício para a sua rua.

Cerca de 80% do espaço das ruas é destinado à circulação e estacionamento automóvel. Em Lisboa e no Porto, o espaço dedicado a estacionamento legal à superfície corresponde a 5% da área total de cada concelho. Uma redução de apenas 10% permitiria recuperar o equivalente a dez Praças do Comércio em Lisboa e seis Jardins Botânicos no Porto. Se a nossa ambição permitisse ainda reduzir em 10% a área da rede rodoviária, teríamos, no mínimo, mais 21 Praças do Comércio em Lisboa e cinco Jardins Botânicos no Porto. O espaço recuperado permitiria alargar passeios, melhorar a velocidade e competitividade do transporte coletivo e ciclável, e reduzir a sinistralidade rodoviária. Para além de melhorarem a nossa saúde e a qualidade de vida, estas medidas trariam benefícios económicos ao aumentar a atratividade do comércio local. Ao contrário do que muitos lojistas pensam, reduzir o estacionamento é geralmente um fator de sucesso. A pandemia da covid-19 mostrou a importância do comércio e serviços de proximidade, uma tendência que poderá generalizar-se no futuro pós-pandemia em que o teletrabalho será mais frequente.

Para reverter os usos do espaço público temos de desconstruir a ideia de que a mobilidade automóvel resulta de uma espécie de lei universal que rege a vida urbana. Não é verdade. Este sistema é uma construção socio-técnica, como demonstram estudos da história da mobilidade em Portugal. A engenharia, geografia e o planeamento urbano foram sempre ingredientes essenciais na construção deste sistema. A economia também. Os economistas têm muito a contribuir para a mudança de paradigma. Não me refiro somente ao contributo das soluções técnicas, algumas das quais já mencionei aquiaqui e aqui, mas antes ao contributo das ideias. A economia é uma área de conhecimento muito diversa que não se esgota nas abordagens neoclássicas, com mais ou menos pendor liberal, dominantes.

Mesmo os economistas neoclássicos, em particular os que estudam a economia urbana e de transportes, defendem a intervenção pública na provisão de infraestruturas e serviços de transporte. A intervenção é justificada através da teoria das “falhas de mercado”, em particular porque se considera que as infraestruturas de transporte têm características de bem público e geram externalidades (positivas no caso do transporte coletivo e negativas no caso do carro). A teoria da “tragédia dos bens comuns” é também usada por estes economistas para demonstrar a inviabilidade da ação coletiva e assim justificar a intervenção do Estado. Nestas circunstâncias, o “mercado” é ineficiente e a intervenção governamental é recomendada através da provisão de serviços de transporte de forma direta ou indireta. Não significa, no entanto, que a intervenção pública esteja em harmonia com a teoria económica. A subsidiação do estacionamento automóvel, que agudiza o problema do congestionamento e das externalidades negativas do carro, a par de subsídios ao transporte coletivo, é pura “esquizofrenia económica”. Por outro lado, alguns economistas da escola da escolha pública argumentam que, mesmo existindo razões para intervenção, estas devem ser avaliadas porque os custos das “falhas do Estado” podem ser maiores do que os custos das falhas de mercado e, pela via das dúvidas, o melhor é confiar no mercado.

Estas duas abordagens económicas representam a filosofia dominante das políticas públicas no setor dos transportes em Portugal, e as soluções que propõem organizam-se em torno do binómio Estado-mercado, frequentemente vistas como concorrentes. Ambas ignoram a importância da história e das instituições, formais e informais, no comportamento dos indivíduos, dimensões estas que são essenciais noutras teorias, como é o caso da economia institucional e da economia política, por exemplo. Estas últimas propõem soluções de governação de recursos partilhados com base em práticas de gestão comunitária. Alguns destes modelos de governação ganharam peso entre os economistas mais ortodoxos através do trabalho da economista política Elinor Ostrom (uma das duas únicas mulheres galardoadas com o prémio Nobel da Economia) em áreas tão diversas como a gestão de sistemas agroflorestais, irrigação e pescas, entre outros. Também no contexto da gestão do espaço público urbano, nomeadamente o espaço ocupado por estacionamento, vão surgindo exemplos de práticas comunitárias em algumas cidades europeias que os nossos autarcas deveriam considerar. Ao envolverem “cidadãos”, “Estados” e “privados” na construção física e simbólica dos usos do espaço público, estas abordagens contribuem não só para as soluções técnicas do problema da mobilidade na cidade, mas acima de tudo para as soluções políticas.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

 
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