O entrançar da economia e da política – revelações da pandemia
Para fazer face à pandemia, não há alternativa à intervenção do Estado, o que significa abandonar a ortodoxia orçamental e monetária e, até, abdicar de uma certa forma de realismo económico. A política toma a primazia sobre a economia.
O coronavírus não ataca só o ser humano; também ataca uma das causas mais profundas da crise política em que vivemos há 30 anos: a afirmação de que os governos não podem fazer nada contra as “leis económicas”. A crise sanitária veio revelar que as decisões políticas podem ignorar (mesmo que momentaneamente) os sacrossantos equilíbrios económicos. É então possível que o político se imponha ao económico – não o esqueceremos. Na realidade, é isso que sempre fez. E é isso que a ascensão dos partidos populistas obriga a questionar.
A verdadeira mentira: liberalização e globalização resultam de leis e forças económicas incontroláveis
Na realidade, a globalização (liberalização do comércio e da circulação do capital) resulta de um projeto político, promovido pelos Estados Unidos e outros países ocidentais, projeto apoiado, justificado e legitimado pela teoria económica dominante. A ideia de base é conhecida: deixar atuar livremente os mecanismos de mercado, tanto nacional como internacionalmente, fomenta a eficiência económica. É aliás função dos Estados promover o bom funcionamento desses mecanismos desregulamentando, por exemplo, o sistema financeiro e as leis laborais, ou privatizando parte dos serviços de saúde (sendo o privado suposto ser mais eficiente que o público) para diminuir as despesas públicas. Em resposta à crise de 2008, as políticas de austeridade foram todas justificadas por estas “verdades e certezas” económicas: a necessidade absoluta do equilíbrio orçamental e da diminuição da dívida pública; não há alternativa.
Para fazer face à pandemia, todos, mas todos, os economistas concordam: é absolutamente necessário que os Estados relancem a atividade económica, impeçam despedimentos em massa, comprem equipamento e contratem pessoal médico. Não há alternativa à intervenção do Estado (através do aumento da despesa e da dívida públicas), o que significa abandonar a ortodoxia orçamental e monetária, e, até, abdicar de uma certa forma de realismo económico. A política toma assim a primazia sobre a economia.
A mentira insinuada: liberalização e globalização possibilitam o enriquecimento de todos
A globalização permitiu de facto o desenvolvimento, enriquecimento e emergência internacional de várias potências, entre as quais a China, de tal forma que a China se tornou uma ameaça à hegemonia americana. A administração Trump atirou então as primeiras pedras protecionistas e Biden vai provavelmente continuar a destruir as regras do jogo internacional promovidas pelos americanos; a União Europeia seguirá, mais cedo ou mais tarde. “America first” assinala o retorno das Nações e, portanto, a inversão do processo de globalização. A pandemia veio estrondosamente revelar os efeitos perversos da deslocalização das atividades económicas e a necessidade de restruturação profunda das cadeias de valor internacionais em vários domínios. Porque só a(s) política(s) nacional(is) consegue(m) proteger os cidadãos.
A globalização teve efeitos profundamente desestabilizadores. Centenas de milhares de trabalhadores perderam os empregos devido às deslocalizações. As desigualdades aumentaram ao ponto de provocar uma polarização social entre os perdedores da globalização e os ganhadores – as elites. A concorrência entre nações levou ao desmantelamento do Estado social: desinvestimento público nos bens comuns como saúde, educação, proteção social e laboral. Ora, a pandemia, ao afetar as categorias sociais mais vulneráveis, veio violentamente reforçar e revelar os desastres sociais causados pela globalização. O confinamento é um “luxo” que está ao alcance sobretudo dos mais favorecidos.
A verdade revelada: uma crise política sem precedentes nas democracias ocidentais
A pandemia veio por a nu a crise política que se encontra em gestação desde 2008, crise ilustrada pelo desaparecimento de partidos políticos tradicionais; pela eleição de Trump, Orbán, Duda, Bolsonaro e outros; pela alarmante polarização política que lavra em vários países. O elemento que têm em comum os partidos populistas é o de negar ou descartar os condicionalismos económicos; ou seja, o facto de supostamente colocarem o político à frente do económico, o bem-estar dos cidadãos à frente dos interesses económicos e financeiros.
Os países ocidentais estão frente a questões de fundo: reconhece-se ou não legitimidade aos Estados nacionais para definir o que é o bem público? E ainda, dispõem hoje os governos ocidentais dos necessários instrumentos de ação? A legitimidade dos Estados depende dos processos de decisão instituídos e da capacidade para melhorar o bem-estar dos seus cidadãos, por via do crescimento económico e da provisão de bens comuns. A forma como responderam à crise de 2008 – socializar as perdas e privatizar os ganhos – vai ser dificilmente aceite no pós-pandemia. Os partidos populistas deram voz aos perdedores da globalização; os Estados vão ser obrigados a tentar diminuir as desigualdades e os sentimentos de injustiça e abandono que alimentam os populismos. Mas onde estão as políticas europeias – industrial, orçamental, social – que possam ser alternativa à globalização?
A China não tem esses problemas. A intervenção do Estado é legítima – o povo chinês adere em massa ao projeto político dos seus líderes, o de fazer da China a maior potência mundial – e o Estado dispõe dos instrumentos necessários para investir desmesuradamente nos setores que considera serem os motores do crescimento de amanhã. O Ocidente enfrenta um duplo desafio. Por um lado, desmoronou-se o sentido do coletivo e a perceção de um destino comum, estando pelo contrário em curso uma polarização dos valores que dificulta a formulação e a adesão da maioria dos cidadãos a uma visão para o futuro. Por outro lado, o politicamente correto condena a procura de uma “nova autoridade”, como se o preço da assunção do coletivo não fosse a aceitação de uma autoridade – legitimada por processos democráticos, obviamente. A democracia é precisamente a configuração institucional que permite controlar tanto o projeto/visão de futuro como o exercício da autoridade. A ânsia por regimes autoritários expressa nos votos não pode ser descurada.
Em matéria de teoria económica, o pós-pandemia representa um território totalmente desconhecido. Sabe-se, no entanto, que não se deveria pensar a sustentabilidade social e ambiental a longo prazo com as categorias do passado; são necessários novos quadros de análise económica. E também é necessário repensar a articulação entre o indivíduo, a sua liberdade e o coletivo. Pensar que a autoridade (não confundir com autoritarismo) é dispensável é repetir o erro da utopia liberal.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico