Regressar à cidade ideal

O humano pós-covid-19 quer morar numa cidade versátil e livre, cuja importância geográfica, paisagística e cultural seja um bom exemplo de articulação da sua escala no território. Vislumbramos um novo modo de vida e com ele a nossa cidade ideal.

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O espaço público é a extensão das nossas casas. Dele nos servimos para complementar o que as casas não permitem. Mas ele é, sobretudo, o local de encontro, o local de partilha, o espaço social e cultural. Quando este é planeado com participação, ponderação e equilíbrio, torna-se simultaneamente meu e de todos, ao mesmo tempo, sem conflitos.

Durante mais de dois meses, estivemos privados da utilização do espaço público e agora dizem-nos para regressar e recuperar a vida comunitária... Mas a experiência deste afastamento, confinamento e desconfinamento potenciará o pensamento crítico sobre as nossas cidades e, consequentemente, sobre o nosso futuro. Por isso, a actualidade impõe a reflexão sobre os modelos de cidade, assim como a investigação em novas práticas de ocupação do nosso território.

Fará sentido existir tamanho “distanciamento” entre as realidades do litoral e as do interior de Portugal? Será esta bifurcação benéfica, quer para os que ficam esquecidos, como para os que ficam claustrofóbicos? Será justa a diferença entre a realidade das grandes cidades, em comparação com a das pequenas aldeias?

Hoje, mais do que nunca, importa reconhecer as lacunas das cidades, mas importa também, consciencializar sobre as necessidades da polarização dos pequenos aglomerados urbanos e, ainda, avaliar o impacto da fusão entre estes extremos se fazer, ora de forma contínua, mas verdadeiramente desigual, ora de forma totalmente distante e desligada. Porque, por um lado, as periferias das cidades estão dependentes de uma qualquer estrada nacional, tantas vezes ambígua e desajustada aos múltiplos propósitos que serve.

Deparamo-nos com A Rua da Estrada, descrita pelo geógrafo Álvaro Domingues, onde muitas pessoas residem e trabalham em condições difusas, perdidas, sem acesso aos equipamentos e espaços de que precisam. Enquanto, por outro lado, as periferias dos aglomerados rurais estão despovoadas e vinculadas a auto-estradas que invadem e dividem o território, isolando as povoações que, depois, se vão decompondo com cada vez menos habitantes.

Arquitectos, paisagistas, geógrafos, engenheiros civis e muitos outros técnicos devem ser chamados a redesenhar os limites urbanos, segundo estratégias rigorosas e ambiciosas. Precisamos de um território mais igualitário, cuja qualidade e versatilidade seja transversal a toda a população, para que não haja mais “filhos e enteados”.

A constatação do esmagamento social imposto pelas cidades, da discriminação vivida nas suas periferias e, ainda, do isolamento dos pequenos núcleos urbanos, evidencia a necessidade de promover a coesão urbana. É urgente reorganizar modelos de crescimento e distribuição das cidades, assim como proporcionar redes de mobilidade bem estruturadas e capazes, quer ao nível local, como também intermunicipal e inter-regional. É necessário elaborar planos e projectos de arquitectura para que os espaços, edifícios e equipamentos urbanos proporcionem elevados níveis de conforto e segurança às populações, de forma verdadeiramente integrada na malha urbana onde se inserem, bem articulada com a paisagem envolvente e com proeminente consciência ambiental.

O humano pós-covid-19 quer morar numa cidade versátil e livre, cuja importância geográfica, paisagística e cultural, seja um bom exemplo de articulação da sua escala no território. Vislumbramos um novo modo de vida e com ele a nossa cidade ideal, a cidade que nos permitirá viver, com qualidade, a nova realidade.

A cidade ideal é caracterizada por uma arquitectura humanizada e ecológica. As casas têm sempre espaços exteriores e as ruas são um prolongamento desses jardins ou pátios semiprivados. A arquitectura da cidade ideal proporciona uma ligação público-privada natural, fluida e equilibrada. Ela permite-nos ter uma horta, ou até um pomar, fazer piqueniques sem sair de casa, ou num qualquer lugar que esteja perto. Os percursos pedestres são flexíveis e versáteis e permitem o alcance a todos os serviços indispensáveis.

Na cidade ideal vive-se o espírito mediterrânico, a vida faz-se “lá fora”. O espaço público recebe ginásios ao ar livre, aulas no exterior, eventos de aniversário e casamentos, há cinema e teatro nos jardins, demonstrações artísticas pelas ruas e tantos outros serviços que são partilhados nas “salas” que a cidade oferece, seja em espaços verdes ou em plena zona histórica.

As praças, jardins, ruas e caminhos da cidade estão desenhados para receber estes e outros usos comunitários, em espaços polivalentes e devidamente providos das condições ideias ao novo modo de vida. Podemos ir a uma qualquer esplanada, porque são bastantes para os que delas se servem. Há sempre lugar para estes usos sem que, por isso, percamos áreas de circulação, porque o espaço público está planeado para que o ser humano seja o seu utilizador principal, o seu experienciador.

Mesmo o que não está alcançável a pé, não nos faz perder tempo em deslocações, porque as distâncias são curtas, tudo está perto. Aqui, o carro está em terceiro plano, porque na cidade ideal a mobilidade faz-se sobretudo a pé ou de bicicleta, trotineta, patins ou outros meios ecológicos, cuja rede de acessos se encontra devidamente pré-dimensionada e equipada para garantir a total autonomia e segurança dos seus utilizadores. Quando estes meios não são suficientes, uma convincente rede de transportes públicos está ao alcance e, apenas depois, o automóvel é o recurso. Assim, a cidade ideal tem menos ruas, e as que existem são mais estreitas, sobrando espaço para zonas pedonais dignas à circulação humana, num ambiente livre de poluição.

A aposta numa arquitectura e planeamento urbano sustentável faz da cidade ideal do séc. XXI o lugar da harmonia entre o ser humano e a natureza. É uma cidade confortável, “verde” e generosa. Uma cidade que agrega, com genuinidade, a paisagem natural com a paisagem construída, possibilitando a simbiose entre diferentes ambientes, sejam praças, ruas ou caminhos, com matas, parques ou jardins, ou ainda albufeiras, rios ou lagos. As cidades devem permitir tudo isto e muito mais!

A inquietação sobre este novo modo de vida deve reaproximar-nos do solo, da distribuição horizontal, da natureza. Quando o nosso “metro quadrado” pertencer a um todo equilibrado, ecológico e humanizado, então teremos descoberto como regressar à cidade ideal!

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