No Japão, os mortos estão à distância de um telefonema

Existe, no topo de uma colina no Norte do Japão, uma cabine telefónica sem rede que atrai milhares de pessoas. Todas procuram o mesmo: conversar com entes queridos que já partiram.

Sachiko Okawa, na companhia dos netos junto à cabine telefónica "do vento", espera "conversar" com o marido, que faleceu há dez anos na sequência do tsunami. Issei Kato | REUTERS
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Sachiko Okawa, na companhia dos netos junto à cabine telefónica "do vento", espera "conversar" com o marido, que faleceu há dez anos na sequência do tsunami. Issei Kato | REUTERS

Debaixo da sombra de uma cerejeira em flor, numa colina da pequena vila de Rikuzentakata, no Japão, está plantada uma inesperada cabine telefónica branca. No interior, Kazuyoshi, de 67 anos, disca o número da sua falecida esposa, Miwako, uma das 20 mil pessoas do norte do país que perderam a vida no seguimento do sismo e consequente tsunami que causaram o desastre nuclear de Fukushima. A Reuters observa-o, a partir do exterior da cabine. Em lágrimas, Kazuyoshi mantém o que parece ser uma conversa telefónica como qualquer outra. Mas esta é uma chamada muito diferente, uma vez que o telefone que segura está desconectado da rede. Não importa. Ele acredita que quem transporta a suas palavras é o vento.

O sexagenário, vereador de Rikuzentakata, recorda que, durante vários dias após o tsunami, procurou Miwako em todos os centros de evacuação, em todas as morgues. Sem sucesso. Durante a noite, remexia os destroços da casa que partilhavam. Nunca teve a oportunidade de se despedir. "Aconteceu tudo tão rapidamente, não consigo esquecer", conta à esposa a partir do interior da cabine. "Enviei-te uma mensagem a dizer-te onde estava, mas tu nunca chegaste a ouvi-la." Miwako foi o amor da sua vida. Conheceu-a quando eram ainda adolescentes. Conta à Reuters que só começaram a namorar dez anos após o seu primeiro pedido. Acabaram por se casar e ter quatro filhos. Antes de desligar a chamada, Kazuyoshi conta a Miwako que o seu último relatório médico revela que perdeu peso. "Irei tomar conta de mim", promete, enquanto o vento sopra no exterior. "Até já."

A cabine telefónica, construída por Itaru Sasaki na sequência da morte de um primo, ainda antes do desastre de Fukushima, já nasceu com o propósito de estabelecer um portal de comunicação com o além. Hoje, atrai milhares de pessoas em luto vindas de todo o Japão.

Sachiko Okawa pega no auscultador. Do outro lado quase jura ouvir resposta do falecido esposo, com quem esteve casada durante 44 anos e que perdeu na sequência do tsunami, há dez anos. Antes de desligar, emocionada, diz-lhe que se sente só. "Adeus, por agora. Volto em breve." Conversar com o marido fá-la sentir melhor. No dia em que a Reuters visitou a cabine, Sachiko veio acompanhada dos netos, que deixaram ao avô uma mensagem. "Já passaram dez anos e agora já ando na preparatória", conta ao avô Daina, de 12 anos. "Há um vírus novo que está a matar muita gente e por isso é que estamos de máscara. Mas estamos todos bem."

A "linha" não está aberta somente para vítimas do tsunami. Hoje há quem a utilize para comunicar com familiares e amigos que perderam a batalha contra a covid-19. O proprietário, Itaru, explica que "a pandemia, como outro desastre, chegou de repente e quando uma morte é repentina, o luto da família é mais difícil". Garante ter já sido contactado por organizações da Polónia e de Inglaterra, pedindo cordialmente "permissão" para replicar o modelo. Há até um filme em produção, intitulado O Telefone do Vento, que tem por base a história desta cabine japonesa.

Sachiko Okawa despede-se do esposo: "Até já".
Sachiko Okawa despede-se do esposo: "Até já". Issei Kato | REUTERS
Os netos deixam mensagens ao avô. "Há um vírus novo que está a matar muita gente, por isso estamos de máscara. Mas estamos todos bem."
Os netos deixam mensagens ao avô. "Há um vírus novo que está a matar muita gente, por isso estamos de máscara. Mas estamos todos bem." Issei Kato | REUTERS
O telefone da cabine está desconectado da rede, mas quem o utiliza acredita que as suas palavras serão levadas pelo vento até aos familiares falecidos.
O telefone da cabine está desconectado da rede, mas quem o utiliza acredita que as suas palavras serão levadas pelo vento até aos familiares falecidos. Issei Kato | REUTERS
Kazuyoshi Sasaki, de 67 anos, junto à cabine onde irá conversar com a falecida esposa, Miwako.
Kazuyoshi Sasaki, de 67 anos, junto à cabine onde irá conversar com a falecida esposa, Miwako. Issei Kato | REUTERS
A esposa de Kazuyoshi Sasaki faleceu na sequência do tsunami que "varreu" a costa japonesa, a 11 de Março de 2011.
A esposa de Kazuyoshi Sasaki faleceu na sequência do tsunami que "varreu" a costa japonesa, a 11 de Março de 2011. Issei Kato | REUTERS
Kazuioshy segura uma fotografia de Miwako.
Kazuioshy segura uma fotografia de Miwako. Issei Kato | REUTERS
No interior da cabine, que foi criada por Itau Sasaki na sequência da morte de um primo, vítima de cancro, ainda antes do desastre de Fukushima.
No interior da cabine, que foi criada por Itau Sasaki na sequência da morte de um primo, vítima de cancro, ainda antes do desastre de Fukushima. Issei Kato | REUTERS
O telefone está desconectado da rede.
O telefone está desconectado da rede. Issei Kato | REUTERS
Quem utiliza este telefone fá-lo para comunicar com os entes queridos que já faleceram.
Quem utiliza este telefone fá-lo para comunicar com os entes queridos que já faleceram. Issei Kato | REUTERS
Uma nota manuscrita por um dos utilizadores do "telefone do vento" foi deixada no interior da cabine.
Uma nota manuscrita por um dos utilizadores do "telefone do vento" foi deixada no interior da cabine. Issei Kato | REUTERS
A cabine atrai milhares de pessoas que vêm de todo o território japonês para conversar com os seus entes queridos.
A cabine atrai milhares de pessoas que vêm de todo o território japonês para conversar com os seus entes queridos. Issei Kato | REUTERS
No interior da propriedade de Itau Sasaki, onde se encontra a cabine telefónica branca.
No interior da propriedade de Itau Sasaki, onde se encontra a cabine telefónica branca. Issei Kato | REUTERS
A propriedade de Itau Sasaki.
A propriedade de Itau Sasaki. Issei Kato | REUTERS
Itau Sasaki criou a cabine ainda antes de 2011 para conversar com um primo que faleceu vítima de cancro. "A pandemia, como outro desastre, chegou de repente e quando uma morte é repentina, o luto da família é mais difícil", explica à Reuters.
Itau Sasaki criou a cabine ainda antes de 2011 para conversar com um primo que faleceu vítima de cancro. "A pandemia, como outro desastre, chegou de repente e quando uma morte é repentina, o luto da família é mais difícil", explica à Reuters. Issei Kato | REUTERS
Issei Kato | REUTERS