A bordo de cada uma das sondas Voyager, lançadas em 1977, vai um disco dourado com o som do mar, das baleias, pássaros e trovões, representações da mulher e do homem e, entre outras imagens e informações sobre a Terra, saudações em 55 línguas. Esta garrafa à deriva no oceano cósmico não é apenas uma mensagem de esperança, é o conjunto da humanidade e um convite para que outros nos visitem num futuro não muito distante.
Se as Voyager tivessem sido lançadas hoje, e se Carl Sagan nos pudesse alegrar outra vez com a sua presença, não tenho dúvidas na preferência de um filme no lugar de um disco e a escolha é só uma: Life in a Day 2020. Produzido por Ridley Scott e realizado por Kevin Macdonald, Life in a Day 2020, disponível para visualização gratuita no YouTube, não é apenas uma sequela, é mais, muito mais, para além do filme original de 2010.
Gravado num só dia, 25 de Julho de 2020, e feito a partir de mais de 324 000 vídeos de 192 países, este filme, o nosso filme, atravessa todo o espectro da humanidade de onde bebemos diariamente, uma humanidade espelhada e reflectida todas as noites no mesmo céu, o céu estrelado às primeiras horas da manhã, um dia prestes a nascer como prestes a nascer estão todas as irmãs e irmãos neste dia singular.
Como uma metáfora, o dia começa, a vida começa, a nossa, mesmo quando já cá não estivermos daqui por muitos anos, ou já amanhã, quem sabe, de pouco importa se outros, iguais, aqui estão, dignos representantes da nossa espécie, felizes por apenas serem enquanto gritam a plenos pulmões a chegada ao mundo.
E então exclamamos de felicidade, aquela felicidade pura e simples enquanto o dia raia e a história começa: “Bem-vindos ao nosso planeta!”. A noite dá a vez e o lugar à madrugada e a madrugada, agradecida, enche-se de cor enquanto metade da humanidade ainda dorme. Apetece viver e fazer parte!
As orações da manhã anunciam mais uma jornada e, vivos, um pai e um filho desfrutam do prazer da presença e amor um do outro e sorrir é simples e tão fácil. Mas a vida não pára e às 5h30 da manhã uma família mongol já ordenha por debaixo de um sol radiante. Não deixa de ser incrível, e este é um factor comum não apenas ao filme, mas à humanidade, a presença de smartphones desde os confins das estepes asiáticas às mãos de uma criança nuns subúrbios perdidos.
Um pouco por todo o lado telefones, galos, relógios, despertadores, rádios e alarmes em geral rompem a noite e os sonhos e a humanidade, estremunhada, espreguiça e boceja: bom dia ou, e porque não, ohayōgozaimasu? Num repente, mil janelas e mil despertares, escovar os dentes, a ginástica matinal, o período no chuveiro, o mundo do lado de lá da janela, um pássaro a voar pela casa e a realidade da pandemia nas ruas desertas, o desemprego, a vida sem abrigo, a precariedade, o isolamento, a solidão de mais um dia.
Num dia apenas, 24 horas por inteiro, famílias viajam, lamentam-se mortes, celebram-se nascimentos e festas de anos, youtubers e influencers passeiam o egocentrismo por redes sociais tão irrelevantes como um telefone desligado ou inexistente enquanto lançamos papagaios, escrevemos cartas e cartas de amor, andamos de bicicleta, protestamos, peço-te em casamento vezes sem conta, casamos vezes sem conta, sobrevivemos, ou não, a tempestades, a cargas de polícia, prisões, injustiças, derramamos sangue, mudamos o mundo para melhor ou pelo menos tentamos.
Engolimos derrotas, saboreamos a glória, acabamos o curso, aprendemos a andar, comprometemo-nos, rompemos e reatamos, fazemos um balanço da vida, conduzimos, fabricamos, construímos, transportamos, semeamos, trabalhamos, reflectimos, rezamos, abraçamos, remendamos, cremamos, voamos, andamos a cavalo, caímos do céu, corremos, passeamos o cão, o gato, o bicho de estimação, vemos o mar, jogamos à bola, passamos demasiado tempo sós, ficamos em casa enquanto a mãe natureza toma o nosso lugar de repente vago, ouvimos o cantar das baleias, deslumbramo-nos diante de horizontes sem fim, escalamos montanhas, damos valor ao que nos rodeia enquanto perdemos tudo, enquanto ganhamos tudo numa escola sem paredes, apenas alunos e professores sentados no chão e a escola é o mundo.
E quando a noite cai ainda é sábado e dançamos até cair enquanto te beijo na boca. Enchemos o peito de ar que a noite se delonga para dar lugar ao sono e às estrelas, novamente as estrelas, sempre as estrelas.
E no fim de mais um ciclo, é impossível não pensar: se vivemos tudo isto num só dia, quanto mais estará por descobrir, quanto mais por desvendar ao longo de outros 365 dias seguidos de uma vida inteira? Life in a day 2020 não é apenas um testemunho, é um legado, um retrato da humanidade não apenas para as gerações futuras mas para quem quer que esteja lá fora, uma mensagem de esperança, um convite e tanta, mas tanta, vontade de viver!