O que é mesmo estruturante numa política teatral
O que de uma forma sintética e axial se pode dizer é que uma qualquer política verdadeiramente estruturante reconduz à necessidade de um tecido produtivo teatral e vice-versa.
Dizer que se quer uma coisa estruturante é insuficiente para ela o ser. Primeiro tem de começar por ser estruturada num pensamento político estratégico. Depois tem de ser estruturável na sua concretização. E para poder ser qualquer uma destas coisas tem de ser sustentada e sustentável pelos meios disponíveis que se têm ou se conseguem gerar e se sabem gerir. E para ser estruturável, estruturante e sustentável, o eixo principal da sua concretização tem de decorrer de um contínuo histórico estável e estabilizado: com passado, com presente e com futuro do feito, não do desfeito. Ou seja, tudo ao contrário do que, de há muitos anos, tem sido a prática nestas andanças dos apoios do Estado ao Teatro (e Artes Cénicas em geral) e de que já em artigos anteriores muito falei: a destruição, sistemática e premeditada, do nosso tecido produtivo teatral. Às estruturas com esse passado e, até então, presente, sucedem-se os golpes de abate dos júris supostamente independentes (1).
O que de uma forma sintética e axial se pode dizer é que uma qualquer política verdadeiramente estruturante reconduz à necessidade de um tecido produtivo teatral e vice-versa. E que eles têm de assentar num modelo robusto. Mas não é preciso reinventar a roda para isso, basta olhar para a Europa. Fê-lo Malraux em França com os Centres Dramatiques; repetiu-se o modelo, com as necessárias adaptações à sua realidade, na Espanha do início da década de 80 com os Teatros Estables; já o haviam feito em Itália com o muito idêntico conceito dos Teatri Stabili no pós-guerra; na Holanda fizeram-no a partir da residência em permanência de estruturas de produção, de Dança ou Teatro, em (quase) todas as Salas de Teatro (e não são poucas); na Alemanha já há muito havia tradição antiga, de unidades de produção nos Teatros Municipais e nos Länder; e por aí fora… E, antecipando, para quem diga que os modelos citados sofreram grandes alterações até hoje, respondo: sim, em parte e não no que é matricial; e se as sofreram é porque antes o foram como foram e foram bem-sucedidos. Aqui, o passo primordial está por se dar, ao cabo de quase meio século de Democracia e de mais de 35 de integração europeia.
Que a prazo, deve ser o Estado a abrir candidaturas para o preenchimento de Espaços Teatrais (não físicos, embora com edifícios físicos também, no conceito de base antes descrito) para que haja estruturas de produção devidamente desenhadas de forma geográfica e diversidade estética equilibradas? Sim, atendendo às diferentes necessidades por áreas e consequentes adaptações dos Cadernos de Encargos. Aliás, até diria ainda mais: abrindo candidaturas quer a pessoas colectivas, quer a pessoas singulares. Que o processo deve passar por um Concurso Público, com definição prévia de intervalos dos montantes e o Caderno de Encargos diferindo de acordo com a natureza de cada um desses Espaços Teatrais?
É mais ou menos pacífico no longo prazo e na formação de um júri com base em habilitações e representação e não em conceitos vagos e imprecisos, como os de “personalidades de reconhecido mérito” (2). Mas a montante, para a exequibilidade de um processo normalizado, é incontornável a preservação, reconstituição, de um tecido produtivo teatral; e, para o corporizar, deve servir de lição o que aconteceu na década de 70 e até meados da de 80 do século passado nessa outra de bizarria de tentar criar Centros Culturais de produção estatal e estatizante, replicando-se uns aos outros. Foi uma leitura distorcida da realidade, projectada de forma mecanicista e unicista. E não é disso que aqui se trata. Bem pelo contrário.
De resto, esse modelo dificilmente vingaria na contextualização do desenvolvimento social e político do rumo português, mas, mesmo antes, a acontecer, teria representado uma outra forma de afunilamento estético (de corrente marcadamente ideológica) e de preferências pessoais. Repetir os mesmos erros, a partir de uma outra corrente vincadamente ideológica (do desastre dos Madoff e dos Lehman Brothers), com o gosto de “caviar Baader-Meinhof cultural”, é repetir a tolice, de pernas para o ar, com outros afunilamentos de gosto e preferências pessoais. O que o bom-senso aconselha e a evidência determina é que isso seja feito a partir da realidade. A partir das unidades de produção (grupos) existentes/resistentes é que é possível defender/reconstituir um tecido produtivo teatral. Esses grupos são estruturas reais, que, em vinte, trinta, quarenta ou mais anos, já deram mais do que provas de o poderem garantir, mesmo que careçam de períodos de instalação para darem uma resposta cabal ao que se lhes há-de ser exigível e exigido numa nova fase. Não são modelos abstractos.
Claro que seria despropositado pensá-lo como um qualquer privilégio definitivo ou sequer direito imutável adquirido por essas mesmas unidades de produção. Isso não é, seguramente, o que pensa o autor deste artigo. Por isso, qualquer mecanismo de prorrogação automática deve ser limitado. Os 6 anos para que aponta a Senhora Ministra, per se, não parece mal. Até para, em dois ou três períodos desse intervalo temporal, tal medida poder ser reequilibrada e reinventada com outros programas, e até com outros protagonistas, visando à mesma garantir a sustentabilidade do tecido produtivo recuperado. Embora se deva deixar inequívoco que este período de transição não se quer numa limitação de mandatos.
Só que, uma vez cumprido o desígnio da recuperação do tecido produtivo destruído sistematicamente nos últimos 10 a 15 anos, importa reavaliar a situação. Até lá, obviamente, que é inadiável criar esse eixo com base no real. Mas que importa salvaguardar mecanismos contratuais que permitam a interrupção de um Acordo de Programação, se houver um incumprimento grave continuado? Nem precisa de resposta. As avaliações é que não podem ser feitas pelos vezeiros júris ad-hoc. É mesmo ao ministro A ou B, e ao Director-Geral C ou D, que cabe essa responsabilidade política. É para isso que foram nomeados.
Porém, este eixo não é bastante? Pois, não. Isso seria mesmo redutor e empobrecedor da diversidade desejável no sector artístico, incluindo os modos de auto-organização do(s) sistema(s) produtivo(s) de e da natureza de fins artísticos. Tal eixo deve integrar-se não como força centrífuga de meios para si mesmo, mas como força centrípeta de reforço destes meios para o todo, numa lógica pluridireccionada de complementaridade. Por isso, uma coisa não impede a outra, antes as faz. O que o tem impedido foi o desastre a que viemos. A tal ponto que o Ministério da Cultura se viu atirado para uma situação de prioridade assistencial, que se compreende, mas não é sua vocação principal.
O que (se) fizer e o que não (se) fizer terá consequências de enorme dimensão. Não seria desculpável deixar as decisões de facto nas mãos de quem pôs isto de pantanas, mesmo quando, com lágrimas de crocodilo, vem justificar-se com insuficiência de verbas para gerir na distribuição, das quais era prévio conhecedor; e acautelou junto das suas clientelas. Tal cedência seria de uma teimosia cega, cuja, objectivamente, resultaria em cumplicidade; e, no plano da subjectividade, em acto suicida para quem a adoptasse. Porque os que foram os fautores e factores destes episódios de destruição do tecido produtivo teatral, não descansariam até reverter a reconstituição deste e das próprias rédeas institucionais a seu bel-prazer.
Esses mandantes “independentes” são, de diferentes para diferentes Governos e Governantes, os responsáveis da instrução da desgraça desta prática. Uma prática que, com a pandemia, esplendorosamente se revelou um fracasso em todas as dimensões. Um fracasso que só provoca descontentamentos e protestos mais ou menos generalizados. Um fracasso que desperdiça meios, energias, talento, trabalho, vontades. Um fracasso que mata futuros, passados, presentes. Um fracasso total e completo. Em suma, ele sim, estruturante: um estruturante fracasso.
(1) Assim o fizeram, para dar um exemplo recente, com a Cornucópia. Já o tinham feito com o Teatro de Marionetas de Lisboa, com o TEAR, com a Casa da Comédia… Assim o vêm sucessivas vezes tentando fazer, de forma mais descarada ou encoberta, com A Barraca, com a Seiva Trupe, com o Novo Grupo, com o Teatro Experimental de Cascais, com o Cendrev… Não tardariam – ou tardarão, se não forem definitivamente erradicados – a fazê-lo com a Comuna, com a Companhia de Teatro de Braga, com o Teatro do Noroeste… E prosseguirão nessa cruzada de destruição com a Companhia de Teatro de Almada, com os Artistas Unidos, com o Teatro da Rainha, com o Teatro Meridional, com o Teatro de Marionetas do Porto…
Porém, a este propósito, sugiro, para ter uma visão de fundo sobre isto mesmo, reler “Enterre-se de vez o ‘cadáver esquisito’ do festim teatral” (14/01/2021), O que pode ser completado com alternativas a tal ‘festim’ em “Quando a excepcionalidade nas artes chama a si a normalização” (15/01/2021), “Criação responsável de massa crítica e liberdade de criação” (29/01/2021), “Da ineficiência da pulverização de verbas para o teatro” (03/02/2021), “Malefícios da política de eventos no teatro” (09/02/2021), “A emergência das ilusões e a ilusão das emergências” (17/02/2021).
(2) Nem mesmo no futuro – ou no imediato para outras formas de recurso a Concurso Público – tais júris podem ser formados por abstracções de “personalidades de reconhecido mérito”. Este assunto – de Modalidades Modelos e Avaliação no Teatro – tratarei já em próximo artigo. Não darei pretexto para se negar que existem outros modos de e como o fazer. Com esse e outros dois, sobre a Descentralização e sobre o Teatro Comercial, fecharei este ciclo.