Criação responsável de massa crítica e liberdade de criação artística
Não precisamos de caciques do gosto. Porque nem os dinheiros públicos são para os artistas brincarem, nem a atribuição deles pode ser para brincar com os artistas. Ou brincar aos artistas.
Uma política de gosto é incompatível com a Democracia. Basta recuarmos a menos de 100 anos para constatar o que foram e aonde levaram as ideias de um cânone único nos totalitarismos do século XX. Mesmo para lá do que está contido no facto de isso ser uma expressão do próprio cerceamento às Liberdades Públicas em geral, as manifestações artísticas, sob a égide do cânone eleito, perderam a sua pujança criativa à medida que ganharam terreno como únicas. Mais: esta perda cultural foi, é, redobrada para os públicos: perdem por ausência de comparação com outros modelos; e nisso perdem também em sentido crítico e na exigência da qualidade.
Todavia, se o Estado deixasse de intervir pura e simplesmente, não seria isento para haver pluralidade. Estaria a passar um cheque em branco para campear outra forma de totalitarismo. Reduzir preferências a uma maioria populacional sem mais, é esmagar os direitos das minorias se exprimirem. E dos públicos tomarem conhecimento de outras expressões, logo impedir, a prazo, uma escolha dinâmica. A analogia com as eclosões (neofascistas) populistas é óbvia. A eleição de um Orban ou de um Trump, mesmo que por maioria de votos, não fez as suas práticas democráticas. Como, na inversa, as imposições minoritárias, de vanguarda ou moralista foram o que foram, e isso é o que é. Só o equilíbrio da diversidade da oferta garante a democraticidade da escolha. Por isso, é que nesse mesmo papel, o Estado não deve – o Estado Democrático não pode – arvorar-se em definidor do gosto.
Porém, quando não há uma visão programática para a Cultura, isso é o que de facto acontece. Porquê? A inexistência de objectivos e de avaliação de resultados mensuráveis, acaba nos braços da subjectividade dos gostos de quem julga. Com facilidade se confundem gostos com qualidade e com preferências e proximidades. O que determina a prevalência de perfis únicos, ou símiles, e até a suspeição legitimada de interesses materiais confluentes. As desejáveis isenção e diversidade substituem-se por uma sucessão de distorções dos factores de avaliação subjectivos num rol de perversões a que o modelo se põe a jeito, como procurei evidenciar aqui mesmo quando escrevi “Enterre-se o ‘cadáver esquisito’ do festim teatral”.
É deste modo que a introdução de avaliações objectivas é útil e saudável para a própria Liberdade de Criação Artística. Para lá de ser eticamente exigível para garantir o uso dos dinheiros públicos no cumprimento de finalidades do interesse comum. Ainda que, realça-se, também por si mesmos diversos. Não é, pois, exagero dizer que só a definição programática de uma Política Cultural se constitui, em última instância, em penhor da diversidade estética. De par, a existência de projectos e/ou programas distintos pré-definidos pela natureza do projecto e/ou programa a que se apresentam, é garante da pluralidade. E assim, é indispensável que haja, no contrato de financiamento, um Caderno de Encargos. Um Caderno de Encargos que, naturalmente, atente à variedade da natureza dos projectos. Mas um Caderno de Encargos que não seja susceptível de interpretações vagas, imprecisas e subjectivas na base do que, sem suporte concreto, acham ou não acham os avaliadores. Um Caderno de Encargos, pois, que sirva de tampão à ‘pessoalidade’ do que foi o histórico dos financiamentos nos últimos 30 anos, fortemente agravado na última década.
Reforçando que os números têm de variar consoante a natureza e características dos projectos (vg Bragança vs Lisboa ou estruturas recentes vs maturadas) todos eles devem reflectir coisas identificáveis. Como, de resto, no caso do Teatro, se faz Europa fora, há muito. Nos casos de um Serviço Público directo (num caso de investigação há-de ser diferente, mas também é possível e desejável estabelecer factores de medição), importa determinar, por exemplo, números mínimos de produções anuais, de sessões, de taxas de ocupação; e até aspectos de expressão ou contributo de criação/manutenção de emprego e de trabalho artísticos. Da mesma forma importa eleger elementos valorativos (clara e concreta, sempre) ou até reguladores compensação de debilidades em aspectos específicos. Aliás, no mesmo preceito da razão de ser dos financiamentos compensatórios para opções que não são autossustentáveis. Vir, por exemplo, em defesa da dramaturgia portuguesa com incentivos e quotas não é restringir a preferência do criador ou dos públicos. Defender a Dramaturgia Portuguesa, como um corpo próprio, é defender a preservação cultural identitária pela Língua. Criar-lhe um espaço não é reconduzi-la a coisa única. Eleger este a outro dramaturgo ou este a outro estilo, impondo-o ao encenador e ao espectador, é que seria um ‘diktat’ incompatível com uma prática democrática.
É assim e só assim que se assegura verdadeiramente uma Arte Democrática. Democrática pela liberdade de opção estética do criador; e democrática pela salvaguarda da pluralidade no acesso à fruição cultural. A argumentação de que o estabelecimento de avaliações verificáveis é dirigista é uma falácia. Tudo o que ficou dito contradita-o. E só tem triunfado porque o assunto é tratado com ligeireza diletante, agravada por amplificação monofónica. Essa argumentação tem-se constituído em álibi para um dirigismo camuflado. E para fazer perdurar a desregulação existente e uma prática política desestruturante de anos a fio. Júris ad-hoc, decisões ad libitum e sem um Caderno de Encargos são cadinho desse dirigismo de facção. É isso uma expressão extremada de um neoliberalismo em que o mercado é o júri; ou de um comunismo de guerra em que o partido de classe é o júri; ou de um nacionalismo fascizante em que o júri é a casta superior. É mesmo uma espécie de iluminismo de ensombramento. Ou uma assombração.
Sendo os recursos finitos, embora manifestamente insuficientes, não podem ser desperdiçados. E ainda que aparentemente paradoxal – e sendo assunto a que voltarei em artigo próprio –, a pulverização das verbas é fenómeno com este concomitante. Ao afunilar, mesmo que dispersas, as verbas para um entendimento (quase) único do que se apoia, não são os públicos que se alargam. Estes alargam-se quanto mais diversificada for a panóplia da criação estética. Tornam-se maiores – de diferente composição, quer dizer-se – quanto mais ricas forem as suas constituições sociológicas; e todos, e cada um deles, mais irão crescendo nas suas exigências. É mesmo o que se aduz, por demonstração a contrario sensu, logo no início deste artigo, a propósito dos totalitarismos do século XX. Pelo que, crescendo por si e entre si migrando, propiciam uma exponenciação dialéctica, aumentando o próprio todo.
Não precisamos de caciques do gosto. Do que verdadeiramente precisamos é de uma Política Cultural que interrompa um ciclo viciado de um círculo vicioso. Porque nem os dinheiros públicos são para os artistas brincarem, nem a atribuição deles pode ser para brincar com os artistas. Ou brincar aos artistas.