Enterre-se o “cadáver esquisito” do festim teatral!

O ‘cadáver esquisito’ não é Graça Fonseca, mas é este festim teatral dos júris costumeiros, que Graça Fonseca não há meio de decidir enterrar de vez, mesmo depois das anunciadas exéquias.

O que em torno da Seiva Trupe me tem mobilizado não se esgota nela. É, ainda mais do que ela, o que carece, há anos e anos e anos, de não mais ser adiado, como agora com um projecto que é uma espécie de lifting ao ‘cadáver esquisito’. Não me move qualquer animosidade em relação à Senhora Ministra da Cultura; o que lhe critico é a demissão da responsabilidade política ao deixar em mãos alheias (de júris e já se verá que júris) decisões estruturantes de uma política programática para as artes cénicas. O ‘cadáver esquisito’ não é Graça Fonseca, mas é este festim teatral dos júris costumeiros, que Graça Fonseca não há meio de decidir enterrar de vez, mesmo depois das anunciadas exéquias.

Lembro que o Senhor Primeiro-Ministro, em vésperas da Campanha Eleitoral para as Legislativas de 2019, num almoço público promovido pelo Clube dos Fenianos do Porto, afirmou, quando interrogado sobre os Apoios às estruturas teatrais, se não ipsis verbis algo de muitíssimo próximo disto: “as [estruturas] que têm dezenas de anos de trabalho reconhecido e têm sido o garante de um Serviço Público não poderão continuar sujeitas a Concurso Público, devendo esse trabalho ser reconhecido directamente pelo Estado”. E sobre este assunto, fora de resultados de ‘concursos’, escrevi centenas de milhares de caracteres – até em pro bono para os gabinetes ministeriais – num acervo imenso de argumentos e propostas. Mas repeti-lo aqui até seria fastidioso, para lá do espaço num artigo, naturalmente, não o comportar. Elenquemos, pois, meia-dúzia de tão ‘branco é, galinha o põe’:

1.º A composição dos júris é uma escolha, em que, além de generalidades (“pessoas de reconhecido mérito”), nada se sabe do que a determina e que condições são exigíveis para ela: nem perfis, nem habilitações, nem sequer representatividades.

2.º Nessa composição transitam pessoas de um júri para actividades antes ou depois subsidiadas, quando não no caso extremo de serem parte interessada directa no ‘concurso’ em causa: é de uma promiscuidade perversa e mais do que discutível sageza para nem dizer que está ferida na legalidade das decisões tomadas, como o demonstrou a condenação do Estado Português no Tribunal Central Administrativo de Lisboa, na sequência do “Movimento dos 31”, em 2.001.

3.º Os questionários que determinam as ‘avaliações’ estão prenhes de contradições e de vícios de forma graves e graves lacunas. É, flagrantemente, o caso de exigir as notas biográficas de personalidades cuja actividade pública está registada (até em documentação na própria tutela), mas, em contrapartida, descurar em absoluto a comprovação das notas biográficas apresentadas, abrindo campo a toda a falsidade de declarações.

4.º Nas apreciações (mai-los seus ‘porém, todavia, contudo’) reina a mais completa contradição: várias vezes, o mesmo argumento valoriza uma candidatura, preferida, e penaliza outra, preterida.

5.º A ‘avaliação’ é supostamente feita em relação a projectos, sem ter em observância, sequer como elemento assessório, o histórico de pessoas e estruturas a concurso, como se fosse uma redacção escolar, onde, depois, os jurados, se permitem escrever sobre elas até com erros de sintaxe.

6.º Não há Caderno de Encargos a montante, nem a fiscalização a jusante do que foi financiado.

De resto, não se entende esta mania de júris, pois onde o que não pode ser um projecto de autor e, por isso, implicaria mais justificadamente um Concurso Público, não os há: as nomeações para as direcções artísticas dos Teatros Nacionais. Mas também isso daria pano para mangas, pelo que, por agora, voltemos ao ponto.

Outro(s) modelo(s) de apoios no teatro são coisa possível e desejável. A começar pelo cumprimento daquilo que o Senhor Primeiro-Ministro anunciou no tal almoço nos Fenianos. Mas também introduzir ‘gavetas’ (como lhe chamou, e bem, Augusto Santos Silva ao tempo de ter sido Ministro da Cultura). Cruzando-as até, entre, digo eu agora como exemplos: estruturas com dezenas de anos e jovens estruturas; projectos de natureza esporádica e projectos de continuidade; programas de reportório e programas de investigação ou experimentação; grupos sediados nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e os mais sediados fora das duas grandes áreas metropolitanas; dentre estes, os do Litoral e os do Interior; as que realizam carreiras de médio ou longo prazo em sala(s) própria(s) e as mais vocacionadas para itinerância; as especificidades de teatro de marionetas e formas animadas, de teatro de rua, de teatro físico e pantomima …

Porém, para já, inadiável, é excluir tais júris da falsa avaliação, antes que excluam eles o tecido produtivo teatral, fazendo deste um esquisito cadáver.

P.S.: Menos de 3 horas depois deste artigo ter sido entregue para publicação, a Senhora Ministra anuncia um conjunto de medidas de excepcionalidade. A excepcionalidade é inegável, mas demonstra que é possível e necessária uma outra, e radicalmente distinta, abordagem da forma de apoio às artes. Vale sempre a pena lutar. Lutei e lutarei. Mais do que nunca é preciso enterrar o “cadáver esquisito” do festim teatral. 

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