Dispomos actualmente de acesso facilitado a notícias que nos vão desafiando, mais timidamente do que o exigível, a olharmos para a realidade da mutilação genital feminina (MGF).
Hoje, não estamos já perante um tema completamente inócuo à consciência colectiva, apesar de, ainda não raras vezes, esta mesma consciência se esgotar em explicações que associam esta prática ao seu carácter violador dos direitos humanos, mas numa leitura não contemplativa ou mesmo negacionista da raiz de género do problema.
Ultrapassadas as barreiras do desconhecimento, das considerações simplistas e da misoginia, tão sintomáticos das sociedades patriarcais em que nos inserimos e transversalmente notório a todas as tipologias de violências de género, a MGF é também frequentemente descrita como uma problemática que acontece “em África”. Sim, naqueles países (bem) lá longe de nós e que tão convenientemente são apelidados de “subdesenvolvidos”, permitindo, sob esta égide, ir legitimando uma desresponsabilização sociopolítica confortável a todas/os nós, que não deixa de se verificar curiosa, ao demonstrar a preponderante óptica etnocêntrica e sustentada na supremacia branca e ocidental, com a qual teimamos em tecer soluções: as nossas soluções.
A MGF é uma prática nociva, dirigida a mulheres e meninas, realizada principalmente até aos 15 anos. Viola os seus direitos fundamentais (por exemplo, o direito à saúde, à integridade pessoal, à infância e juventude, a ser livre de discriminação e de tratamentos cruéis ou degradantes) e compromete a sua vida, o seu futuro. Integra procedimentos invasivos que podem passar pela remoção parcial ou total da genitália externa feminina ou outras lesões nos seus órgãos genitais, por razões não médicas (dados da Organização Mundial de Saúde, 2020) – violento, desumano, ceifador da inocência e dos sonhos de infância.
Apesar das acções já em curso para a erradicação desta prática nefasta, estima-se que 200 milhões de mulheres e meninas tenham sido expostas a MGF nos países onde a prática está concentrada, diz a OMS. E, relativamente ao ano de 2020, estima-se que 4,1 milhões de meninas e mulheres se encontravam em risco desta prática (dados do Fundo das Nações Unidas para a População).
Em Portugal, no ano de 2020, apesar de todos os silenciamentos e afastamentos físicos impostos pela pandemia, foram sinalizados 101 casos de MGF e foi sentenciado o primeiro caso julgado no nosso país. Desde 2015, ano da criminalização da MGF em Portugal, é notório o investimento na sua erradicação, nomeadamente através da capacitação de profissionais para a sinalização destes casos.
Dia 6 de Fevereiro, assinala-se o Dia Internacional da Tolerância Zero à MGF, lembrando-nos da urgência de atacar as raízes profundas e robustas das desigualdades de género que vedam mulheres e raparigas ao acesso a justas e devidas condições para alcançarem o seu pleno potencial. Sob o mote deste dia, convido a uma reflexão sobre a MGF, num exercício de empatia (nunca de paternalismo), a partir das palavras de Audre Lorde, que afirmava que não seria livre enquanto alguma mulher fosse prisioneira, mesmo essas correntes fossem diferentes das suas.
Cortar definitivamente com a prática da MGF é uma condição vital para a progressão mundial que, inevitavelmente, passa por um compromisso de cooperação global e apoiado na voz das principais protagonistas da história, que devem ser empoderadas e suportadas por todas/os neste caminho comum de libertação.