Excesso de mortes cria lista de espera nos crematórios

Alguns fornos estão a fazer até sete cremações diárias, uma capacidade dilatada desde o início da pandemia, mas que não se revela suficiente: em alguns crematórios o tempo de espera atinge os cinco dias.

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Paulo Pimenta

A média móvel dos últimos sete dias saldou-se em 675 óbitos, quando no período homólogo de 2020 se fixou nos 386. E, se o número de internados, nomeadamente por covid-19, está a pressionar o sistema de saúde, o excesso de mortalidade está a obrigar a um reforço dos crematórios, técnica funerária que é cada vez mais procurada: nas grandes áreas urbanas ronda, actualmente, os 60%.

Em algumas zonas a espera arrasta-se por alguns dias: por causa da elevada procura, é certo, mas também pelo facto de alguns espaços não se terem adaptado ao contexto que se vive. “Um enterro está a ser realizado no mesmo tempo que antes, em 48 horas; já as cremações dependem – na Área Metropolitana de Lisboa, estamos com 72 horas a resvalar para os quatro dias, mas há outros em que a espera já vai nos cinco dias”, relata Carlos Almeida, presidente da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL).

Enquanto isso, na Área Metropolitana do Porto, “para Janeiro, os óbitos estão dentro da normalidade”, mas as listas de espera nos quatro crematórios, Lapa, Paranhos, Prado do Repouso e Matosinhos, repetem-se. É que, explica o presidente da Associação dos Agentes Funerários de Portugal, Vítor Teixeira, a opção pela cremação tem vindo a aumentar bastante nos últimos anos – “representam seguramente mais de 60%”. As marcações para cremação oscilam, segundo este responsável, numa espera entre 24 horas, como é o caso do crematório do Cemitério da Lapa, e cinco dias, exemplo do de Paranhos; Matosinhos está a fazer marcações para dois dias depois e o do Prado do Repouso para daqui a quatro dias.

A diferença entre os quatro espaços, todos de gestão das respectivas autarquias, deve-se ao alargamento ou não do horário: em Paranhos, o horário não foi alargado, ainda que seja possível fazer cremações fora de horas por um pagamento extra, enquanto o do Prado não só “foi reforçado com novas câmaras frigoríficas” como “acelerou o número de cremações diárias”.

Também em Lisboa os crematórios procederam a ajustes. Carlos Almeida conta que todos “aumentaram a capacidade de cremações diárias desde o início da pandemia”. Em Lisboa, onde há três crematórios de gestão pública, “tem havido um esforço permanente em dar resposta: foram abandonados outros tipos de cremações, como de ossadas, para alargar o horário e dar resposta ao número de óbitos – a partir das 8h da manhã estão a funcionar”, relata o também agente funerário. No entanto, alerta, há um limite máximo para o número de vezes em que os fornos são usados diariamente, já que a sua sobrecarga pode originar danos nos equipamentos que “precisam de períodos de arrefecimento”. No caso da capital, cada crematório consegue dar resposta a entre seis e sete acções diárias, o que corresponde a uma capacidade máxima de 21 por dia.

Ainda que, aponta, “há crematórios subaproveitados, como é o caso do de Vale Flores, em Almada”. No entanto, a Câmara Municipal de Almada, que gere o espaço, salienta que o crematório em causa “está, desde Janeiro de 2020, a funcionar das 6h30 às 18h, todos os dias da semana, disponibilizando horários para seis cremações diárias, chegando às sete, sempre que necessário e justificável”, tendo, desde a última sexta-feira, prolongado o horário: “está em funcionamento das 6h30 às 22h, o que permite a realização de nove cremações diárias”, esclarece a autarquia, adiantando que “tem seis câmaras frigorificas disponíveis”.

Já o de Camarate, sob a alçada da Câmara de Loures, passou a abrir ao sábado a partir desta semana, depois de a autarquia ter sido interpelada pela ANEL no sentido de dar uma resposta excepcional a tempos extraordinários.

Uma directiva comum

“Se queremos aliviar as morgues dos hospitais, é preciso dar uso às câmaras de frio que existem fora das unidades de saúde”, considera Carlos Almeida.

“Neste momento estamos com cerca de 600 óbitos por dia, sendo que as estruturas que temos funcionam para 400 mortes diárias. Vamos considerar os 200 a mais como as vítimas de covid-19 – se assim for, serão tratados com o protocolo que manda que não haja velório”, explica Carlos Almeida, adiantando que o facto “torna possível transferir os cadáveres para as câmaras de frio nos crematórios”. Há 18 no Alto S. João e outras tantas nos Olivais; noutros haverá três ou quatro vagas.

Ainda que refira que a região do Porto tem tido dias dentro da normalidade, Vítor Teixeira concorda e adianta que “algumas funerárias têm o cuidado de, quando têm condições, isto é, câmaras frigoríficas, irem buscar o corpo aos hospitais”. No entanto, defende, isso podia ser assegurado nos crematórios, só que em alguns isso tem um preço: “Em Matosinhos, por exemplo, há um custo por cada dia em frio quando essa espera existe porque não há capacidade de resposta por parte do crematório.”

“Claro que não apresento essa despesa à família”, sublinha, o que somando aos valores que não são cobrados por todos os extras que não são usados, hoje um funeral tem um preço inferior. “Um maior número de funerais não significa mais facturação, dado que há muitos serviços que não são encomendados.” Carlos Almeida constata o mesmo: “As funerárias facturaram no último ano menos 20 a 30% do que no ano anterior.” No entanto, refere tratar-se de “um esforço de guerra”, que pode ter a forma de “atitudes, contributos, solidariedade”.

Para dar uma resposta mais eficaz, ambos concordam que seria desejável ter uma directiva comum a todo o país e a todos os crematórios públicos, sobretudo neste cenário de pandemia: quanto a horários, dias de funcionamento e condições várias.

Repensar funerais

Se, por um lado, é essencial acelerar e agilizar as cremações, por outro, é imperativo repensar todo o processo de funeral sem desconsiderar o momento difícil pelo qual os familiares de quem partiu estão a passar – algo a que o compasso de espera das filas para os crematórios não vem ajudar.

Vítor Teixeira explica que os agentes funerários se têm esforçado por “sensibilizar as famílias para o número de pessoas, para o afastamento”. Já Carlos Almeida sugere a criação de um momento de despedida mesmo que a cremação só seja possível dias depois, possibilitando o alívio dos hospitais, já que o cadáver, após a homenagem, passaria para a câmara frigorífica dos crematórios. “É uma forma de aliviar o sistema sem retirar às famílias o direito ao luto.”

A sugestão não é ainda um método corrente, mas o responsável da ANEL diz ser possível, com esforço por parte do agente funerário, criar empatia com a família – e permitir que seja a família a concluir que é a melhor situação. “Se conseguirmos fazer isto, vamos dar alguma tranquilidade às pessoas.”

Resta ainda saber se, com as missas suspensas, se procederá também ao encerramento das capelas mortuárias. Para já, o que se sabe é que essa decisão caberá a cada pároco e à respectiva autarquia. “É possível que algumas paróquias assumam a não-realização de velórios, mas para já não há qualquer indicação sobre isso”, remata Vítor Teixeira.


Artigo actualizado às 15h40, com informação relativa ao crematório de Vale Flores, Almada

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