A Irlanda é um paraíso fiscal (sim, os números mentem)
Os números são fundamentais, mas não vivem sozinhos. Isolados, podem enganar. Mesmo quando são verdadeiros. São usados como arma de persuasão para o bem (informar) e para o mal (desinformar).
Há dias recebi um “autocolante” por WhatsApp sobre o sucesso da Irlanda. Como os posters que se colam nas paredes, os miniposters digitais têm cores fortes e mensagens simples. Os mais eficazes têm números e chegam com pele de cordeiro e um tom neutro e factual, como quem diz as horas.
A tendência é acreditarmos numa informação com números e por isso muitos terão acreditado no “autocolante” sobre a Irlanda. “Estamos habituados a mentiras com palavras. Mas com números?”, escreve o matemático Steven Strogatz na recensão a Proofiness – The Dark Arts of Mathematical Deception, de Charles Seife. “Deviam ser frios, sólidos e objectivos. Os números não mentem e não admitem discussão. São o melhor tipo de factos.” A seguir, o matemático acrescenta: “É exactamente por isso que os números podem ser tão poderosamente, tão persuasivamente enganadores.”
Os números são fundamentais para compreender o mundo, mas não vivem sozinhos. Isolados, podem enganar. Mesmo quando são verdadeiros. Em 2003, George W. Bush disse que ia baixar os impostos e que os americanos iam poupar, “em média”, 1586 dólares por ano. O cálculo matemático estava certo. Mas é errado usar médias quando os valores máximos e mínimos estão em extremos muito distantes. Ao falar da média, Bush escondeu o impacto real da sua reforma, que na altura se resumia assim:
- 23,7% das famílias pouparia 8 dólares
- 16,6% pouparia 307 dólares
- 13,3% pouparia 638 dólares
- 9,7% pouparia 825 dólares
- 7,6% pouparia 1012 dólares
- 13% pouparia 1403 dólares
(já vamos em 83,9% dos agregados familiares americanos e ainda não chegámos aos 1586 dólares)
- 6,8% pouparia 2543 dólares
- 6,6% pouparia 3710 dólares
- 1,6% pouparia 7173 dólares
- 0,3% pouparia 22.485 dólares
- 0,1% pouparia 112.925 dólares
(a soma dá 99,3%; a fonte é a FactCheck.org e os dados são do Tax Policy Center).
Conclusão? Só 15,4% das famílias americanas pouparia 1586 dólares e as famílias com rendimentos acima de um milhão poupariam mais de 100 mil. Hoje é sabido que quase 85% dos americanos mal notou o corte de impostos de Bush e que os milionários — não os ricos, mas os milionários — gostaram bastante da nova política. Mas o número de Bush era verdadeiro.
Ouvimos todos os dias que os números não mentem, mas sem contexto e sem bastidores, criam uma ilusão de verdade. E mentem. Mesmo os números reais. E nós caímos que nem patinhos.
Fiquei curiosa com o tal “autocolante” digital sobre a economia irlandesa, que tentava mostrar o sucesso da Irlanda, por oposição a Portugal. É bom criticar, pôr em causa, exigir mais. Outra coisa é brincar com o fogo. Desinformar é brincar com o fogo. A Irlanda é um paraíso fiscal e os números do miniposter digital que circula por aí são tão enganadores que até dói.
O miniposter diz que na Irlanda o imposto sobre os lucros das empresas é 12,5% e em Portugal é 31,5%. Todos sabemos que o IRC em Portugal é 21%. De onde vem o 31,5%? Quando se soma a taxa geral às derramas municipais e à taxa extra que só se aplica às empresas com um lucro superior a 1,5 milhões de euros. Quantas empresas portuguesas têm este perfil?
O miniposter diz também que a Irlanda está em 6.º no ranking de liberdade económica e Portugal no 72.º. No ranking sempre citado (da ultra-conservadora Heritage Foundation), Portugal aparece em 2020 em 56.º lugar, melhor do que a Espanha (58.º), França (64.ª), Itália (74.º) e Grécia (100.º).
Outro número do miniposter é sobre o IRS. Temos um imposto alto (48%), mas a solução é baixar o IRS? Se fosse tão simples, como explicar a força das economias francesa (IRS vai aos 45%), americana (37%), dinamarquesa (56%) ou a própria economia irlandesa, cujo escalão mais alto é 40%? Já agora: um salário de 1500 euros é tributado de formas diferentes nos dois países — cá, é salário médio, lá é salário baixo. É comparar alhos com bugalhos. E porquê comparar o salário médio (como faz o poster) e não o poder de compra? Vou adivinhar: porque a diferença de salários em termos de poder de compra seria grande, mas não tão chocante? Portugal quase duplica o salário em termos de poder de compra e isso baralhava a mensagem.
O número mais enganador — e uma grande lata — é sobre o crescimento económico. Entre 2016 e 2018, a Irlanda cresceu 20% e Portugal 6%. O autor esqueceu-se do asterisco: a Irlanda é um paraíso fiscal. Lembra-se do “milagre” de 2015, quando o PIB irlandês triplicou? Em 2014, a economia tinha crescido 7,8% e em 2016 cresceu 26,3%. Foi quando as multinacionais se “mudaram” para a Irlanda — Intel, Boston Scientific, Dell, Pfizer, Google, Hewlett Packard, Facebook, Johnson — e fizeram uma ginástica fiscal chamada “inversão”. Lembra-se o que disse Barack Obama? Que a “inversão” era “uma brecha fiscal insidiosa”. Para nós também. Por causa da criatividade fiscal da Irlanda, milhares de milhões de lucros são desviados dos países europeus para lá, Portugal incluído.
Caro leitor: quando vir autocolantes sobre o sucesso da Irlanda, releia o “caso Apple”. Lembra-se dos 0,05%? Foi quando a Apple teve 16 mil milhões de euros de lucros, mas só 50 milhões foram tributados. O sucesso irlandês está cheio de números esquisitos. Neste caso, o poster dizia “são 10h da manhã” e até parecia verdade. Mas eram seis da tarde.