Justiça angolana prolonga a prisão preventiva de Carlos São Vicente no caso dos 900 milhões congelados
Procuradoria-Geral justifica-se com a “especial complexidade” do processo e o risco de fuga do arguido por causa das “conexões transnacionais”. O constitucionalista Jorge Miranda diz que a Justiça “ofende elementares princípios do Estado democrático de direito” ao privar o genro do primeiro Presidente de Angola da liberdade.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola decidiu prolongar por mais dois meses a prisão preventiva de Carlos São Vicente, o antigo director executivo da falida seguradora angolana AAA, detido desde 22 de Setembro por suspeita de peculato, tráfico de influência e branqueamento de capitais. Segundo o despacho, a que o PÚBLICO teve acesso, a PGR justifica-se com “a especial complexidade do processo” e o risco de fuga do arguido.
“Para o efeito, prorrogo excepcionalmente o prazo de prisão preventiva do arguido Carlos Manuel de São Vicente, nos termos do artigo 40.º n.º 1 al a), 2 e 3 da Lei 25/15 de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, por mais dois meses, em função da necessidade de se realizarem as diligências em falta, porque o processo reveste-se de especial complexidade”, diz o despacho de prorrogação da medida de coacção, assinado por Maria de Jesus Cardoso Gonçalves na quinta-feira.
O despacho refere igualmente “o particular circunstancialismo em que foi cometido” o alegado crime em investigação, “mormente as conexões transnacionais, que na eventualidade do arguido ser posto em liberdade, o risco de se colocar em fuga, mostrar-se-ia em nível alto”, o que “poderia comprometer a conclusão da instrução”.
O processo foi aberto quando em Agosto a Justiça suíça congelou 900 milhões de dólares numa conta de São Vicente por suspeitas de branqueamento de capitais, tendo em Setembro a PGR angolana ordenado o arresto de vários edifícios e hotéis do grupo AAA, pertencente ao empresário.
Ainda antes de saber da prorrogação da medida de coacção, a defesa de Carlos São Vicente já tinha impugnado o despacho de prisão preventiva por violação da Constituição, de convenções internacionais, dos direitos humanos, por falta de fundamentação e por riscos para a saúde do arguido, tendo para isso pedido um parecer ao constitucionalista Jorge Miranda, especialista na Constituição de Angola que é peremptório: “Privar Carlos São Vicente da liberdade, já ao longo de vários meses, ofende elementares princípios do Estado democrático de Direito”.
Para Jorge Miranda, as medidas aplicadas ao empresário são inconstitucionais porque estão baseadas em “meras aparências de factos e não com factos concretos exigidos por Lei” e porque os crimes que lhe são imputados estão “baseados em meras abstracções”.
Além disso, refere o constitucionalista, “não se divisam no processo indícios dos crimes imputados que pudessem justificar a prisão preventiva” e, como os bens de São Vicente já foram arrestados e tendo em conta o seu estado de saúde precário, “não se divisa nenhum perigo de fuga” e “nem de perturbação do processo”.
“Não se compreende porque não foi determinada a apresentação obrigatória, em lugar de prisão preventiva”, conclui Jorge Miranda.
Face ao prolongamento das medidas de coacção, a Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da PGR tem agora de produzir provas para justificar a decisão de manter Carlos São Vicente detido.
Monopólio dos seguros petrolíferos
A Angola Agora e Amanhã, AAA ou Triple-A, desempenhou um papel importante na indústria petrolífera angolana como fornecedora de serviços financeiros e de seguro à Sonangol, tornando-se num dos maiores grupos empresariais angolanos, com negócios também na hotelaria.
Como escreveu Jonuel Gonçalves no PÚBLICO em Setembro, “a seguradora dispôs, durante anos, do monopólio em seguros de risco e gestão de fundos de pensão para todo o sector petrolífero de Angola, por adjudicação directa, ou seja, sem concurso”.
Em 2016, as boas graças da AAA e de São Vicente, casado com Irene Neto, filha de Agostinho Neto, o primeiro Presidente de Angola, perderam-se quando José Eduardo dos Santos emitiu um decreto presidencial a revogar o papel monopolista da AAA nos seguros do petróleo no país por causa, justificava, de uma “gestão alegadamente não transparente”.
O facto de São Vicente ser casado com Irene Neto, ainda hoje membro do Bureau Político do MPLA, o partido no poder em Angola desde a independência, aumentou a publicidade em torno do caso, até porque a filha de Agostinho Neto é titular de uma das contas congeladas.
“O assunto ganhou dimensão política com protestos da família Neto contra a menção do nome do ex-Presidente”, como escrevia Jonuel Gonçalves no referido texto, mesmo que “tal menção não aponta qualquer responsabilidade, decorrendo apenas da pergunta que se faz hoje com frequência, em abertura de contas, sobre se o titular está politicamente exposto”.