A Ordem de Biden
A presidência Joe Biden tem de assumir a inevitabilidade da coexistência de várias ordens, ou esferas de influência - a americana, a chinesa e a russa.
No seu muito interessante livro A Ordem Mundial, Henry Kissinger escreve que “Toda a ordem internacional sofre, mais cedo ou mais tarde, o impacto de duas tendências que põem em causa a sua coesão: ou há uma redefinição de legitimidade, ou uma alteração significativa do equilíbrio de poder.” Segundo ele, a primeira tendência ocorre quando “os princípios subjacentes aos compromissos internacionais se alteram substancialmente, por serem abandonados pelos que estavam responsáveis pela sua guarda, ou ultrapassados com a imposição revolucionária de um conceito alternativo de legitimidade.” Já a segunda manifesta-se quando a ordem “se mostra incapaz de assimilar uma alteração profunda nas relações de poder”.
Agora que se inicia a nova Administração Biden, poucos assuntos terão mais impacto na vida de todos nós do que a forma como ela lidar com a necessidade de adaptar a ordem internacional às realidades dos dias de hoje.
Ao contrário de muitas explicações simplistas, que atribuíam a crise da ordem internacional liberal à simples ação de Donald Trump, assumo aqui que as regras, leis, instituições e preferências normativas que regulam o relacionamento no sistema internacional enfrentam há vários anos uma crise, simultaneamente, ao nível da legitimidade e da distribuição de poder, não sendo possível regressar ao passado idealizado das décadas 1990 e 2000.
Vamos por partes. A chamada ordem internacional liberal criada pelos Estados Unidos após o fim da Guerra Fria só foi possível pela existência da unipolaridade e porque a potência unipolar era liberal. O fim da esmagadora superioridade de poder da América, por um lado, e o colapso do princípio da democracia liberal como fonte de legitimidade nas relações internacionais, por outro, tornam necessário criar uma nova ordem que traduza quer a atual configuração da relação de poder, quer as várias ideologias das principais potências mundiais.
A presidência Joe Biden tem de assumir a inevitabilidade da coexistência de várias ordens, ou esferas de influência - a americana, a chinesa e a russa – e dar prioridade à criação do que Carlos Gaspar tem chamado de ordem internacional própria das democracias liberais. Em concreto, tal passa por fortalecer a democracia liberal dentro de casa e no mundo ocidental e por reforçar as alianças permanentes democráticas.
O primeiro aspeto tem a ver com a questão da legitimidade e implica a restauração do consenso sobre a ideologia da ordem das democracias liberais. Para tal, é preciso combater a deriva nacionalista, populista, iliberal e autoritária em todos os Estados que queiram fazer parte dela e reafirmar valores como o pluralismo, o cosmopolitismo, o multilateralismo, o comércio livre, a liberdade, a democracia, os direitos humanos, o Estado de Direito e a economia de mercado.
O segundo aspeto está relacionado com a distribuição de poder e com o reforço de alianças como a NATO, bem como os aliados democráticos no Indo-Pacífico, através do princípio da partilha de responsabilidades e de custos na manutenção da ordem e na Defesa Comum, aspeto ainda mais relevante numa altura em que os Estados Unidos estão em Retraimento Estratégico.
Esta tarefa não pode ignorar o facto de a estabilidade internacional implicar que pelo menos as principais potências estejam minimamente satisfeitas. Num mundo de várias esferas de poder, a questão coloca-se não da forma clássica, mas em termos da necessidade de a ordem internacional das democracias liberais ter de encontrar algum tipo de “acomodação” com a China e a Rússia. É certo que a competição entre elas é inevitável, mas é essencial evitar que tal se transforme num “jogo de soma nula”.
A Administração Biden é uma grande oportunidade para a ordem democrática liberal, talvez irrepetível. Nada será fácil, mas é preciso tentar. Pois, como também nos recorda Kissinger: “A nossa era precisa de ter como objetivo alcançar o equilíbrio enquanto refreia os cães da guerra. E temos de o fazer enquanto somos fustigados pelas correntes alterosas da história. A famosa metáfora para isto está no fragmento que nos adverte dizendo que “não se pode caminhar duas vezes no mesmo rio”.