“É uma questão de tempo”: à procura do próximo vírus na República Democrática do Congo

Por causa da sua grande biodiversidade e debilidade económica, a República Democrática do Congo é um país propenso ao aparecimento de novos vírus. Em plena pandemia de covid-19, dois jornalistas da EPA foram ao berço do ébola e lançam um alerta para o impacto das alterações climáticas e da pobreza. 

Cerimónia religiosa decorre no centro de acolhimento para refugiados, em Biringi, na República Democrática do Congo (RDC). ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
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Cerimónia religiosa decorre no centro de acolhimento para refugiados, em Biringi, na República Democrática do Congo (RDC). ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA

As alterações climáticas, a pobreza e o aparecimento de novos vírus podem parecer três fenómenos distintos, independentes, mas estão "profundamente interligados", alerta Emmanuel de Merode, director do Parque Nacional de Virunga, na República Democrática do Congo (RDC). O país, na sua grande biodiversidade e debilidade económica, é particularmente propenso ao surgimento de novos vírus — tanto que foi, no passado, o berço do VIH ou do ébola, vírus de origem zoonótica, ou seja, que podem ser transmitidos de animais para seres humanos. Tal como o SARS-Cov-2, que está na base da pandemia de covid-19.

O surgimento de um outro novo vírus potencialmente perigoso para seres humanos na República Democrática do Congo é iminente. "É uma questão de tempo", assegura a jornalista da agência EPA Amelia Golsmith, que, em conjunto com o fotógrafo Hugh Kinsella Cunningham e com o apoio do Pulitzer Center, se deslocou ao país no sentido de perscrutar o problema. 

A RDC é um país de características muito particulares. A sua biodiversidade é exuberante, assim como o nível de pobreza da sua população  três quartos da população congolesa sobrevivem com menos de dois dólares por dia. Em paralelo, a desflorestação intensiva do território, que tem por base a profunda desregulação do sector no país, "sacode" o ténue equilíbrio do ecossistema local, formando novas e imprevisíveis relações entre os seus elementos. O ébola, de acordo com Emmanuel de Merode, teve precisamente "origem numa área de desflorestação intensiva" nos anos 70 do século passado.

É sobre o último surto de ébola, em Kivu, que aconteceu entre 2018 e 2020 e que foi, entretanto, contido, que se debruça o trabalho The Next Super Virus, da dupla da EPA. Com epicentro no Sul da floresta tropical de Ituri, "o surto espalhou o pânico e o terror", escreve a jornalista. 

Yvette Adaniya, enfermeira em Beni, no norte de Kivu, garante que surgiram rapidamente teorias da conspiração em torno da doença. "Muitas pessoas acreditavam que o vírus não existia, que se tratava apenas de política e que havia um embuste em curso que tinha como objectivo beneficiar forças internacionais que lucrariam com a ajuda humanitária que seria enviada", explica a profissional de saúde. As teorias conduziram à organização de dezenas de ataques armados contra trabalhadores de combate ao ébola na região e ao assassinato do epidemiologista Richard Mazouko.

Yvette Adaniya, sobrevivente do ébola, visita a sepultura do marido num local especialmente designado para vítimas do ébola, no norte de Beni, Kivu, República Democrática do Congo. "O diabo não irá distrair-nos de novo", diz à EPA.
Yvette Adaniya, sobrevivente do ébola, visita a sepultura do marido num local especialmente designado para vítimas do ébola, no norte de Beni, Kivu, República Democrática do Congo. "O diabo não irá distrair-nos de novo", diz à EPA. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Fotografia aérea tirada com drone à cidade de Mangina e arredores. Em Mangina surgiu o paciente zero do surto de ébola de 2018-2020, em Kino, RDC.
Fotografia aérea tirada com drone à cidade de Mangina e arredores. Em Mangina surgiu o paciente zero do surto de ébola de 2018-2020, em Kino, RDC. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Rachel Rukwati, enfermeira em Beni, Kivu do Norte, RDC. "À medida que o coronavírus se espalha no mundo, digo ao mundo, enquanto trabalhadora na área da saúde, que assim que notarem a chegada do vírus à sua cidade, que o aceitem como uma doença e não como um fenómeno político. Se não for tratado como uma questão médica, não será endereçado como tal. Quando se reage a uma doença, as hipóteses de vencê-la aumentam usando medidas de precaução."
Rachel Rukwati, enfermeira em Beni, Kivu do Norte, RDC. "À medida que o coronavírus se espalha no mundo, digo ao mundo, enquanto trabalhadora na área da saúde, que assim que notarem a chegada do vírus à sua cidade, que o aceitem como uma doença e não como um fenómeno político. Se não for tratado como uma questão médica, não será endereçado como tal. Quando se reage a uma doença, as hipóteses de vencê-la aumentam usando medidas de precaução." ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Fotografia de Rachel Rukwati, em 2019, durante o combate à epidemia de Ebola, em Kivu do Norte, RDC.
Fotografia de Rachel Rukwati, em 2019, durante o combate à epidemia de Ebola, em Kivu do Norte, RDC. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Fotografia aérea revela zona comercial de Mambasa, na floresta de Ituri, uma área de grande biodiversidade e recursos naturais. Mambasa fica junto à estrada que liga a floresta ao Uganda, e é por isso um ponto estratégico no tráfico ilegal de animais selvagens, um lugar onde a desflorestação e a mineração não são fiscalizadas.
Fotografia aérea revela zona comercial de Mambasa, na floresta de Ituri, uma área de grande biodiversidade e recursos naturais. Mambasa fica junto à estrada que liga a floresta ao Uganda, e é por isso um ponto estratégico no tráfico ilegal de animais selvagens, um lugar onde a desflorestação e a mineração não são fiscalizadas. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Andrew Menu, refugiado oriundo do Sudão do Sul, chega ao centro de trânsito de refugiados da UNHCR, no Congom, em Ituri. O singular ecossistema do Congo e o seu contexto social tornam o país num dos mais complexos do mundo no que toca a questões de saúde e segurança. A sua biodiversidade é, historicamente, considerada responsável pelo surgimento de vírus como o HIV e o ébola.
Andrew Menu, refugiado oriundo do Sudão do Sul, chega ao centro de trânsito de refugiados da UNHCR, no Congom, em Ituri. O singular ecossistema do Congo e o seu contexto social tornam o país num dos mais complexos do mundo no que toca a questões de saúde e segurança. A sua biodiversidade é, historicamente, considerada responsável pelo surgimento de vírus como o HIV e o ébola. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Ana Rose é refugiada do Sudão do Sul e vive no campo de refugiados de Biringi, na RDC. "Aqui estou confortável, não há guerra. Trabalhava na agricultura, mas tive de abandonar o país devido ao conflito."
Ana Rose é refugiada do Sudão do Sul e vive no campo de refugiados de Biringi, na RDC. "Aqui estou confortável, não há guerra. Trabalhava na agricultura, mas tive de abandonar o país devido ao conflito." ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Refugiados oriundos do Sudão do Sul, que escapam a fenómenos climáticos e a conflitos armados, assistem a uma missa no campo de refugiados de Biringi, em Ituri, na RDC. As migrações são responsáveis pelo transporte de vírus entre fronteiras.
Refugiados oriundos do Sudão do Sul, que escapam a fenómenos climáticos e a conflitos armados, assistem a uma missa no campo de refugiados de Biringi, em Ituri, na RDC. As migrações são responsáveis pelo transporte de vírus entre fronteiras. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Criança indígena corre por entre as árvores da floresta Ituri, em Mambasa, na República Democrática do Congo.
Criança indígena corre por entre as árvores da floresta Ituri, em Mambasa, na República Democrática do Congo. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Fotografia aérea tirada com um drone que revela os incêndios que são ateados pelos agricultores, em Kwilo, RDC. Com a desflorestação e a perda de habitat, os animais migram para novas áreas e entram em contacto com seres humanos pela primeira vez.
Fotografia aérea tirada com um drone que revela os incêndios que são ateados pelos agricultores, em Kwilo, RDC. Com a desflorestação e a perda de habitat, os animais migram para novas áreas e entram em contacto com seres humanos pela primeira vez. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Fidel Bahati, líder da unidade de cães pisteiros do Parque Nacional de Virunga, os "Congo Hounds",  na companhia do seu cão, Bónus, durante um treino no parque. "Eu utilizo cães sabujo e spaniels para combater a caça furtiva no parque natural", disse à EPA.
Fidel Bahati, líder da unidade de cães pisteiros do Parque Nacional de Virunga, os "Congo Hounds", na companhia do seu cão, Bónus, durante um treino no parque. "Eu utilizo cães sabujo e spaniels para combater a caça furtiva no parque natural", disse à EPA. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Muzuka, gorila de seis anos, no interior do Paruque Nacional Virunga, na RDC. A gorila foi salva da armadilha de um caçador furtivo. O seu pé teve de ser amputado devido ao ferimento causado pela armadilha. O Parque Nacional Virunga National Park tem no interior um abrigo para gorilas órfãos ou salvos de caçadores que os vendem como animais de estimação ou para consumo de carne.
Muzuka, gorila de seis anos, no interior do Paruque Nacional Virunga, na RDC. A gorila foi salva da armadilha de um caçador furtivo. O seu pé teve de ser amputado devido ao ferimento causado pela armadilha. O Parque Nacional Virunga National Park tem no interior um abrigo para gorilas órfãos ou salvos de caçadores que os vendem como animais de estimação ou para consumo de carne. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Mangaza Hosea, membro de comunidade indígena Mbuti, posa para o retrato na floresta de Ituri, RDC.
Mangaza Hosea, membro de comunidade indígena Mbuti, posa para o retrato na floresta de Ituri, RDC. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA
Membro da comunidade indígena de Mambasa desce de um coqueiro, na floresta Ituri, na RDC.
Membro da comunidade indígena de Mambasa desce de um coqueiro, na floresta Ituri, na RDC. ©Hugh Kinsella Cunningham/EPA