2020: retrospectiva de uma relação
Ela fez anos e apagou as velas com um leque, “por causa da covid”. Ele foi despedido “por causa desta situação”. Ela começou a fazer terapia, “com isto tudo que se passa”. Ele teve de cancelar o ginásio “derivado à pandemia”.
Conheceram-se em Março depois de um swipe para a direita no Tinder e assistiram juntos à chegada do vírus. Veio o confinamento e ficou cada um em sua casa, com uma ponte pelo meio. Começaram a seguir-se no Instagram, a falar pelo WhatsApp e a fazer jantares românticos por Zoom. Arranjavam-se da cintura para cima e usavam pijama e pantufas da cintura para baixo. Ele fazia a piada do brinde no ecrã. Ela aproximava o copo da câmara e brindava com ele. Já conheciam de cor os livros das estantes um do outro.
Ele encheu a casa de papel higiénico. Ela gozou com ele e mandou-lhe os memes dos loucos do papel higiénico. Chegou Abril e foram à janela bater palmas aos profissionais de saúde. Ele ensinou-lhe que se devia desinfectar as compras, os sacos e pacotes. Trocavam links com os números do dia, a música do cocó das professoras da telescola e os supostos golfinhos nos canais de Veneza.
Ele lamentava o recolher obrigatório e ela encolhia os ombros e usava a expressão “novo normal”. Ele enfrentou a zaragatoa, interrompeu o teletrabalho, atravessou a ponte às escondidas e pediu-a em namoro com uma serenata à porta de casa. O teste à covid deu negativo e o pedido de namoro, positivo. Ele prometeu-lhe viagens pós-pandémicas. Só não lhe prometia que seriam na TAP. Ele era mais “Tenham noção” e ela “Vai ficar tudo bem”. Ele partilhou a “passe” da Netflix com ela e viram o Tiger King. Ela partilhou a playlist do Spotify com ele e ouviram Billie Eilish.
Choraram com os italianos a cantar ópera nas varandas. Ele deixou crescer o bigode. Ela começou a fazer pão caseiro. Emocionaram-se com o Black Lives Matter. Assistiam às conferências de imprensa de Graça Freitas. Comparavam as texturas dos desinfectantes. Viam os lives do Bruno Nogueira. Ela via até ao fim, ele saía antes do Filipe Melo. O Bolsonaro disse que era só uma gripezinha. O avô dela morreu com a gripezinha. O funeral teve muitas lágrimas e poucos abraços. Ela aprendeu a fazer costura no YouTube. Ele mandava-lhe flores para casa pela Glovo. Inscreveram-se em aulas de ioga online. Foi decretado o estado de calamidade. Ele não percebia como podia o estado de calamidade ser menos mau do que o estado de emergência, nem o que significava, e ela explicou-lhe que significava que já podiam ir a brunches. Criaram conta no TikTok e dançavam as mesmas coreografias. No Verão, desconfinaram. Ajudaram a encher as praias e beberam drinks de fim de tarde. Jantavam fora até às 20h e só abusavam do álcool-gel. Setembro era amanhã e chegou. E com ele o primeiro milhão de mortos. Ele tweetava sobre as enchentes do Avante! e ela sobre as enchentes de Fátima. Ela, sobre o regresso da Cristina Ferreir,a e ele, do Jorge Jesus.
Ela fez anos e apagou as velas com um leque, “por causa da covid”. Ele foi despedido “por causa desta situação”. Ela começou a fazer terapia, “com isto tudo que se passa”. Ele teve de cancelar o ginásio “derivado à pandemia”.
Quiseram ficar acordados para celebrar a derrota de Trump, mas perceberam que poderiam ter de ficar acordados muitos meses e foram dormir.
O Marcelo apareceu em tronco nu. Depois as coisas ficaram estranhas (ainda mais). O distanciamento já não era só social. E não era preciso apontar termómetros às testas deles para perceber que a temperatura tinha descido. Ele começou a partilhar vídeos de teorias da conspiração e a comentar nos jornais “e as pessoas não morrem de outras coisas?”. Convidou-a para se juntar ao grupo de Facebook “Engenheiros pela Verdade”. Ela não aderiu. Ela gostava da Marta Temido. Ele, não. Ele já não queria usar máscara. Ela fazia as próprias máscaras. Ele usava com muita frequência as palavras “embuste” e “acordem!”. Ela deixou de conseguir decifrá-lo e não havia QR Code que lhe valesse.
Ele deu-lhe de presente de Natal o Manuscrito de Auschwitz. Ela mandou-lhe uma compota. Mas os presentes não aliviaram as tensões. Vieram as notícias da vacina e ela quis celebrar. Ele disse que nunca iria tomá-la. Insultaram-se à moda de 2020: ela chamava-lhe “negacionista”, ele chamava-lhe “ovelha”. O namoro estava em estado de emergência. E não havia botão de pânico.
“Tenham noção.” Não tiveram. “Vai ficar tudo bem.” Não ficou. E, no fim de Dezembro, voltaram a instalar o Tinder. O ano não foi a única coisa a acabar.