Resposta a Raquel Varela: não sei para onde vamos, mas sei para onde não podemos ir
O caminho que a historiadora escolheu é perigoso. Questionar é seguramente positivo e procurar respostas também. Mas quando falamos de temas que nitidamente desconhecemos (como a utilização de RNA mensageiro), devemos ter humildade para ouvir as explicações de quem trabalha na área e sabe bastante mais do que nós.
Gostava de começar esta resposta por esclarecer que sempre respeitei intelectualmente Raquel Varela, apesar de nem sempre concordar com as suas opiniões. Foi, por isso, com muita pena e alguma desilusão que assisti ao seu posicionamento na questão da pandemia com que nos debatemos há largos meses e da qual, ninguém duvide, todos estamos cansados. É com profundo desalento que olho para os comentários das publicações de Raquel Varela no Facebook e percebo que a sua página se transformou em ponto de encontro para todos aqueles que, independentemente do motivo, decidiram virar costas à ciência e acreditar na narrativa que mais jeito lhes dá (e há lá de tudo: negacionistas, conspiracionistas, egoístas ou gente simplesmente muito cansada e de discernimento perdido).
A opinião escrita por Raquel Varela para o PÚBLICO, que alguns entendem como válida, parece-me o culminar da comunicação desastrosa que a historiadora tem levado a cabo sobre este tema. E começa logo muito mal com o destaque no título onde nos diz que “não vim aqui debater mortos”. É que se não veio, devia. Não querendo entrar num debate filosófico sobre o valor da vida humana, gostava de relembrar uma célebre frase de Josef Stalin que diz que “a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”. No exacto momento em que escrevo esta resposta, a covid-19 matou 1.620.823 de pessoas em todo o mundo. E isto, olhando friamente, é só um número, uma estatística, a morte de que a Raquel não veio falar. Começa a ficar mais difícil se considerarmos que cada um destes mais de um milhão e meio de pessoas era o pai, a mãe, o filho ou o avô de alguém.
Como escrevi na minha crónica de domingo, os mortos têm rosto. E desprezar o facto de que a Suécia tem mais mortos do que os seus vizinhos nórdicos é olhar apenas para o problema pelo prisma que mais jeito lhe dá. A Raquel diz que os suecos chegam ao fim deste caminho como uma sociedade mais adulta e responsável. Eu prefiro pensar a que custo o fizeram.
É do conhecimento geral o que aconteceu nos lares suecos, onde mais de um quinto dos residentes infectados não tiveram sequer direito a uma única avaliação médica. Cerca de metade dos mortos na Suécia eram residentes em lares. O próprio primeiro-ministro sueco reconheceu o épico falhanço do país neste quesito e Sofia Wallstrom, directora-geral da Inspecção da Saúde sueca, já fez saber que foram detectados cuidados mínimos muito abaixo do aceitável. Se isto, se este abandono dos mais frágeis, é o que faz com que uma sociedade se torne mais adulta e democrática, eu, pela parte que me toca, dispenso bem. Prefiro a sociedade menos adulta, mas mais humana, que se sacrifica em prol da vida do outro.
E antes que a Raquel me venha acusar de demagogia ou que use para me atacar o mesmo discurso que usou contra o intensivista Gustavo Carona, deixem-me já fazer o “disclaimer”: sim, tenho vários anos de cuidados intensivos (UCI). Mas não, a minha perspectiva não está inquinada por isso. O que a experiência em UCI me dá, e que a Raquel não pode nem nunca poderá ter, é o conhecimento prático que não se adquire por mais livros que se leiam ou história que se conheça. Há coisas que só percebe quem está no terreno. E esse não é o caso de Raquel Varela, que escreve, confortavelmente sentada à secretária, sem nunca ter visto um doente jovem em decúbito ventral, a passar por sucessivos recrutamentos alveolares, com gasimetrias cada vez piores até ao momento em que no monitor o traçado cardíaco é substituído por uma linha recta e uma equipa inteira tem de lidar com a frustração de ter perdido uma batalha. É que para quem trabalha nestes lugares cada vida conta. A estatística pouco nos importa quando lutamos por cada doente como o ser único que ele é. E uma sociedade que não se une para salvar uma vida não é uma sociedade mais democrática, é uma sociedade egoísta.
Mas as falhas do artigo de opinião da historiadora não ficam por aqui. Cara Raquel, saiba que a Internet está cheia de “estudos científicos”. E, sim, as aspas são propositadas. Saiba que é possível arranjar estudos para provar quase tudo aquilo que quisermos. Basta ignorar todos os que contradizem a nossa opinião. Mas a ciência, felizmente, tem um método, e para se chegar a determinadas conclusões é necessário avaliar a qualidade de toda a evidência existente. Neste caso concreto, a melhor evidência está do lado da utilização das máscaras e do lockdown (sendo que aqui, obviamente, é lícito discutir os custos sociais e económicos desta opção) como formas eficazes de evitar a propagação do vírus. Então, quando a Raquel escreve que se “multiplicam estudos científicos que deslegitimam com provas a eficácia de medidas como confinamentos e uso de máscaras na comunidade em pessoas saudáveis” está, pura e simplesmente, a ignorar todos os outros, melhores e mais robustos, que afirmam o contrário.
O caminho que a historiadora escolheu é perigoso. Questionar é seguramente positivo e procurar respostas também. Mas quando falamos de temas que nitidamente desconhecemos (como a utilização de RNA mensageiro), devemos ter humildade para ouvir as explicações de quem trabalha na área e sabe bastante mais do que nós. Dizer que temos um amigo cientista que nos disse que, ou que conhecemos um virologista que acha que não sei quê, não é sequer um argumento. E o desconhecimento da Raquel nesta área é tão gritante que fez uma publicação no Facebook em que dizia que esta vacina poderia alterar o ADN. Ora, para quem não percebe nada destes conceitos e lê tais palavras, está, pois, instalado o pânico que a historiadora passa a vida a acusar os outros de promoverem.
Tive um professor de História – acho que se chamava Jorge – que no primeiro dia de aulas nos pediu que escrevêssemos a frase “para compreender o presente e conhecer o futuro é importante compreender e conhecer o passado”. Esta frase ficou sempre comigo e, por isso, nunca me atrevi a desprezar o papel da história e da perspectiva global e preditiva que nos apresenta. A Raquel devia experimentar fazer o mesmo em relação à ciência. Talvez assim, sem sobranceria, pudesse compreender que não sabe tudo sobre todos os assuntos. E que em relação à covid-19 está total e absolutamente errada.