Dia 126: A descoberta do prazer de cortar cabelos em confinamento
O que vamos concluir desta pandemia, quando a analisarmos em retrospectiva, é que estivemos todos muito mais ansiosos do que na altura quisemos admitir.
Querida Ana,
Cortei a minha própria franja. Comecei a embirrar com ela e como estamos confinados não podia ir pedir socorro à nossa Cristina. Se era urgente? A mim parecia-me, porque é esse o efeito que estarmos enclausurados tem em nós, tudo parece urgente, basta ver as filas para os supermercados nas manhãs dos dias em que a partir das 13 h estamos proibidos de sair à rua. Por isso sim, era urgente, tão urgente como a ânsia de ir comprar camarões para o jantar. E, por isso, peguei numa tesoura e cortei-a. Mas agora vem a revelação: deu-me tanto prazer a sensação da tesoura... clique, clique, clique... a cortar cabelo que, se calhar vou pedir à Cristina um tutorial por Zoom e ataco o resto. Ela é sempre tão querida, que não se deve importar, e quanto a mim, até o cabelo voltar a crescer não me esqueço desta quarentena!
Espera, querida filha, não te preocupes, não enlouqueci, mas fiquei a perceber melhor o efeito claustrofóbico que os confinamentos têm, com toda a certeza, em muita gente. E esta ansiedade subliminar que nos deixa muito alerta em relação ao nosso próprio corpo, sempre à espera dos sintomas, a interpretar cada ataque de tosse ou dores nas articulações como sinal de que a doença vai começar, e quando depois — felizmente! — se fica por ali, sentimos um misto de enorme alívio com uma gigantesca irritação, suponho que parecida com a de um moço forcado quando preparado para a pega, vê o touro debandar para outro lado, desinteressado.
Sabes, Ana, talvez esta sensação de urgência que me levou a pegar na tesoura nos ajude a recordar a dificuldade que sentem as crianças, e sobretudo os adolescentes, em adiar os impulsos. Dizem os avanços da ciência que só pelos vinte e tal têm uma parte qualquer do cérebro pronta para o conseguirem realmente fazer, e de facto vendo as guerras e os disparates em que os nossos reis teenagers se meteram, suspeito que é verdade, mas parece-me provável que os supostos adultos possam regredir em momentos de maior stress. E, o que vamos concluir desta pandemia, quando a analisarmos em retrospectiva, é que estivemos todos muito mais ansiosos do que na altura quisemos admitir.
Quanto ao cabelo... Achas que algum dos teus filhos deixa a avozinha treinar a arte nos seus cabelinhos? Talvez a M., bem subornada.
Mando-te uma fotografia da franja na próxima rodada de WhatsApp, e agradeço conselhos de como mitigar a ansiedade do confinamento, e não estrangular quem se confina connosco (sobretudo isso!).
Querida Mãe!
Oh, meu Deus, neste confinamento também descobri o prazer de cortar cabelos!! Cortei as pontas dos meus e é verdade, dá um prazer enorme. Claro que o resultado não foi bem aquele que imaginava enquanto dava tesouradas e me imaginava dona de um salão. Acredite que fiquei com um respeito gigante pelos profissionais. Aliás, tentei depois no do mini E., e conclui que cortar um cabelo a uma criança de 2 anos, de maneira a que não pareça uma esfregona, é suficientemente desafiante para ser considerado um desporto olímpico.
Quanto ao resto, concordo que andamos todos mais ansiosos do que verbalizamos, e que o vírus e este ambiente tão estranho tem culpas no cartório, mas acho que a raiz é mais profunda. Suspeito que a ansiedade de que sofremos há anos, andava disfarçada pela correria do ir buscar e trazer, mas agora não tem tanto sítio por onde se esconder. Estava a pensar como me sinto ansiosa em tempos de espera, seja numa fila do supermercado ou simplesmente a esperar que a água ferva, e como hoje em dia me é muito difícil ficar esse tempo sem fazer nada. Vou imediatamente buscar o telemóvel. Podia dizer que estou a aproveitar o tempo de forma mais útil e geri-lo com mais eficiência, mas não seria a verdade toda. A verdade toda é que já não aguentamos ficar sem fazer “nada”.
E isso, principalmente em relação aos nossos filhos, devia dar-nos que pensar. Não precisamos de ser contra os telemóveis, nem ficar alarmados com a velocidade inevitável do dia-a-dia, mas fazia-nos bem a todos exercitar a capacidade de não estar a absorver mais informação. De não nos “entretermos”. Provoca muita ansiedade. Mas passado essa cortina de fumo... suspeito que há um sítio maravilhoso. Experimentamos cinco minutos?
Quero muito ver essa franja… Ou não quero?!?
Vá dando notícias.
Beijos
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram