Costa pediu a Marcelo que previsse confinamentos compulsivos no novo estado de emergência

Acórdão da Relação alertou para a fragilidade da lei geral para obrigar as pessoas a ficar em isolamento sem decisão de um juiz. Marcelo explicitou essa possibilidade de restrição à liberdade individual no novo decreto.

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Presidente e primeiro-ministro acertaram juntos os termos do decreto LUSA/ANTÓNIO COTRIM

O confinamento compulsivo passou a estar previsto no decreto do estado de emergência que vai entrar em vigor na terça-feira na sequência de um pedido do Governo, apurou o PÚBLICO. Foi o primeiro-ministro que solicitou ao Presidente da República que fizesse essa clarificação, uma vez que no decreto actualmente em vigor nada se diz expressamente sobre isolamentos obrigatórios. 

A chamada de atenção para este tema, que desde o início da pandemia tem sido um dos mais polémicos​ quanto ao quadro legal em vigor, foi feita depois de ser conhecido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa em que as juízas sustentam que não pode ser a autoridade da saúde a determinar o isolamento de ninguém, apenas com base num teste positivo. E insistiam que, tratando-se de uma privação da liberdade, tinha que ser decidida por um juiz.

À parte da questão da fiabilidade dos testes, o problema colocado nesse caso concreto dizia respeito a um pedido de habeas corpus de quatro turistas alemães que foram obrigados a ficar 20 dias em quarentena e isolamento, em hotéis dos Açores, em Agosto. Nessa altura não vigorava nenhum estado de emergência, tendo o tribunal de Ponta Delgada dado razão aos cidadãos alemães quanto à natureza ilegal daquela privação da liberdade.

O mesmo tipo de questão tinha também merecido, em Agosto, uma decisão do Tribunal Constitucional, que equiparou as quarentenas obrigatórias determinadas pelo Governo Regional dos Açores a prisões ilegais, considerando-as inconstitucionais. No acórdão, os juízes do Palácio Ratton comparam o isolamento profiláctico no hotel durante duas semanas a ida para a cadeia, embora num “cenário mais agradável” mas “sem tempo de recreio para fazer exercício”.

No entender das várias instâncias judiciais e também dos constitucionalistas, o confinamento compulsivo que não seja determinado por questões de saúde mental (este está previsto numa lei específica) só pode ser obrigatório no quadro do estado de emergência. Isto porque se trata de uma restrição à liberdade individual, e portanto, fora desse quadro excepcional, teria de ser decidido por um juiz.

Nos três primeiros decretos do estado de emergência, em Março e Abril, Marcelo Rebelo de Sousa previa expressamente a possibilidade de confinamentos compulsivos no leque das restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia. Mas não o fez de forma clara no decreto de 5 de Novembro, quando voltou a declarar o estado de emergência.

Restrição de liberdade

Agora, Marcelo volta a explicitar esse tema no decreto de 19 de Novembro. Nas restrições ao direito à liberdade, prevê-se, “na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, o confinamento compulsivo em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes, de pessoas portadoras do vírus SARS-CoV-2, ou em vigilância activa”.

“Foi uma evolução curiosa”, analisa Jorge Bacelar Gouveia, professor de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa, relacionando também a decisão com o acórdão da Relação de Lisboa.

José de Melo Alexandrino, da Universidade de Lisboa, corrobora e acrescenta que, pela primeira vez, Marcelo Rebelo de Sousa coloca os confinamentos no âmbito da restrição do direito à liberdade, e já não apenas do direito de circulação, como fez nos primeiros decretos. “Fez bem, é mais seguro e mais amplo”, considera Alexandrino, uma vez que “os isolamentos afectam o direito à liberdade e isso não era explícito” nos decretos da primeira vaga.

Desde o início da pandemia que a questão dos confinamentos compulsivos é polémica, tendo havido no início alguns juristas que defendiam que a Lei de Bases da Saúde, na sua Base 34, dava poder autónomo à autoridade da saúde para “desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública”.

No entanto, o entendimento dos constitucionalistas é que, não havendo uma lei de emergência sanitária que enquadre especificamente o confinamento provocado por doença infecto-contagiosa, será necessário recorrer à Constituição, e em particular ao estado de emergência, para que se possa obrigar alguém, infectado ou em quarentena, a ficar retido em casa ou noutro lugar. As várias decisões judiciais – em tribunais dos Açores, na Relação de Lisboa e no Tribunal Constitucional – confirmaram esse entendimento.

Fora do estado de emergência, será sempre necessária uma decisão judicial para obrigar alguém a ficar em casa. Já no âmbito do estado de emergência, a autoridade de saúde passa a ter esse poder efectivo, de acordo com a Lei de Bases da Saúde. “É para isso que serve o estado de emergência, para restringir direitos, senão não serve para nada”, defende Bacelar Gouveia.

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