A cidade do futuro, metabolismo urbano e rede de bens comuns
É preciso alertar que, numa sociedade cada vez mais envelhecida e com grupos sociais muito desprotegidos, o investimento em tecnologia é importante, mas o investimento em humanidade é muito mais relevante. A cidade do futuro não pode prescindir nem da ética do cuidado nem da felicidade dos seus cidadãos seniores.
As ideias que presidem à criação da nova cidade devem ter como paradigmas a integração cidade-campo e a conexão urbanismo-ecologia. O homem de hoje tende a deixar de ser rural ou urbano para alcançar uma visão cultural que abrange tanto os valores da ruralidade como os da cidade. E quem diz os valores diz, também, as atividades. O conceito de paisagem global tende a informar todo o processo de ordenamento do território e o próprio urbanismo (Telles, 2003: 334).
As cidades em transição na era da economia digital
A inteligência territorial e as cidades inteligentes estão na ordem do dia. Os territórios inteligentes são, como sabemos, uma espécie de novo emblema das políticas do território e da sociedade em rede.
Nos dias de hoje, prevalece, claramente, a versão tecnológica e gestionária de smart city. Com efeito, já hoje existe um pacote de serviços muito variado que inclui a infraestruturação digital, as redes integradas de energia e a eficiência energética, a gestão dos bairros inteligentes, as conexões e a mobilidade urbana, a administração em linha, as plataformas urbanas e a sua interoperabilidade, o ambiente e os indicadores de qualidade de vida, a recolha e tratamento de dados e, finalmente, a segurança dos cidadãos e dos sistemas em ação na smart city. A iniciativa “Smart cities tour” da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) é um bom exemplo desta abordagem urbana de inteligência territorial, baseada, essencialmente, numa abordagem de otimização de recursos virada para a prestação de serviços públicos.
Assim sendo, na era digital, muitas cidades portuguesas irão fazer convergir a sua política de inteligência urbana e assentar o seu virtuosismo tecnológico em três blocos de medidas de política digital: a virtualização de serviços convencionais numa ótica vertical de serviço-utente, a criação de plataformas made in numa perspetiva mais horizontal e colaborativa interpares e, por fim, uma lógica mais individualista, de urbanauta conectado, numa perspetiva de cidade uberizada com sistemas GPS e inúmeros aplicativos.
Porém, à nova economia digital, para fazer prova de vida, não bastam as comunidades online criadas de geração espontânea em espaços mais ou menos sofisticados de hub tecnológico, espaço de coworking ou fablab municipais ou associativos. Também não bastam as start-up geradas em incubadoras e aceleradoras, que nascem todos os dias, muitas delas sem quaisquer garantias de sustentabilidade. Há, de facto, um longo caminho a percorrer entre o conforto de uma plataforma digital gerida por uma rede online e o desconforto de um problema real gerido por uma comunidade real, municipal, associativa ou privada.
Neste contexto, a cidade do futuro vai muito para lá da cidade inteligente da era digital. Ela será, de facto, uma cidade cada vez mais digitalizada, mas será, antes de mais, uma cidade cujo metabolismo urbano se alimentará de humanidade, natureza e cultura. Ainda nas palavras do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, que nos transporta para o outro lado da inteligência, teremos a inteligência humana como inteligência orgânica e biofísica:
A cidade monolítica está condenada, é preciso recriar a unidade da urbe-ager-saltus-silva. É por isso que se deve substituir um urbanismo espartilhado em zonas independentes, sustentáveis artificialmente, por um urbanismo de base sistémica onde os ecossistemas naturais e os agrossistemas se articulem com o facies edificado da cidade. É esta diversidade espacial que hoje deve presidir à cidade-região (Telles, 2003: 333).
Há muito que as fronteiras da cidade foram ultrapassadas. Os perímetros urbanos foram alargados, surgiram os anéis suburbanos e periurbanos, os equipamentos e as infraestruturas rasgaram o território envolvente e as barreiras naturais em todas as direções, a alteração do uso dos solos promoveu a especulação e a irracionalidade urbanísticas. Nesta sequência desordenada desapareceu a unidade espacial da urbe-ager-saltus-silva. A cidade tipológica do mundo urbano-industrial do pós-guerra é aquela em que tudo ou quase tudo fica circunscrito pelo domínio do automóvel e das grandes densidades urbanísticas, cuja massa e volumetria se sobrepõem à morfologia e aos valores culturais do território. O restabelecimento desta unidade perdida é hoje um imperativo das políticas de ordenamento e de urbanismo.
À medida que cresce, a cidade artificializa-se cada vez mais e faz algumas vítimas. Em primeiro lugar, as camadas sociais mais desfavorecidas que são atiradas para os subúrbios inóspitos e agressivos, em segundo lugar, os ecossistemas naturais, cada vez mais poluídos, fragmentados e degradados e, por último, os centros históricos e os seus pequenos núcleos habitacionais, filhos bastardos de heranças desencontradas e políticas públicas ausentes, onde apenas ficam alguns serviços públicos e os elementos monumentais mais significativos.
A cidade do futuro, metabolismo e rede de bens comuns
O processo de desenvolvimento urbanístico tem quase sempre menosprezado a morfologia do território e os sistemas ecológicos indispensáveis à sustentabilidade do espaço, ao mesmo tempo que os valores culturais das paisagens tradicionais são desprezados ou menosprezados. Entretanto, a cidade densa urbanisticamente torna-se energetívora.
Por outro lado, ao crescer, as cidades urbano-industriais alargam as suas áreas de influência, tornam-se verticais, vão penetrando sucessivamente o território e a sua dimensão é cada vez mais regional, em anéis sucessivos que se estendem do suburbano e do periurbano até ao rural de proximidade e ao rural remoto. Esta é, por isso, também, uma grande oportunidade, pois o restabelecimento da conexão entre áreas urbanas e paisagens rurais está ao nosso alcance.
Seguindo de perto os ensinamentos do arquiteto Ribeiro Telles, na construção do sistema-paisagem e da cidade-região devem ser respeitados os seguintes princípios de ordenamento (Telles, 2003: 334):
- Em primeiro lugar, o primado da ecologia humana porque o homem está sempre no centro de todas as mudanças no território;
- Em segundo lugar, a centralidade do continuum naturale, sistema contínuo de funcionamento dos ecossistemas naturais através de estruturas que garantem a presença da natureza, a biodiversidade e a circulação dos elementos;
- Em terceiro lugar, a centralidade do continuum aedificandi, sistema contínuo de espaços edificados, superfícies pavimentadas e equipamentos que, no seu conjunto, constituem o habitat residencial do homem;
- Em quarto lugar, a relevância do genius loci, os lugares, biofísicos e simbólicos, histórico-paisagísticos, com valor emblemático na cidade, no país e no mundo;
- Em sexto lugar, a importância da polivalência dos espaços, suporte das atividades de produção e lazer;
- Por último, a intensificação dos elementos biológicos, no sentido da autoregulação e autoregeneração dos sistemas naturais.
Estes sete princípios fundamentais são os ingredientes básicos de um novo metabolismo urbano e, uma vez tomados com conta, peso e medida, constituirão o caldo de cultura apropriado onde poderão germinar os bens comuns colaborativos e a reinvenção do quotidiano na cidade do futuro. Tudo leva a crer que o paradigma do Metro-Boulot-Dodot da sociedade industrial e da sociedade salarial está, aparentemente, de saída de cena em direção à sociedade pós-industrial e pós-salarial da era digital, isto é, a caminho da construção da cidade-rede dos bens comuns colaborativos. Eis, em minha opinião, os elementos mais distintivos da região-cidade ou cidade-rede do futuro:
1- O triângulo virtuoso da cidade do futuro: mais humanidade, natureza e cultura
Mais humanidade, desde logo, para proteger os cidadãos mais desprotegidos, pobres e vulneráveis da cidade, os cidadãos prioritários da cidade-rede, mas, também, a descarbonização da sociedade e o combate pela mitigação das alterações climáticas para salvaguardar a saúde pública, e finalmente, o acesso livre à cultura como expressão mais elevada e sublime da natureza humana; ou seja, a ética do cuidado como princípio geral, bem comum e ação colaborativa da cidade do futuro;
2- O instrumento disruptivo: as tecnologias digitais, a literacia e a generalização dos serviços virtuais em linha
As tecnologias digitais são um instrumento disruptivo, não apenas porque desmaterializam os serviços e o front office das administrações, mas, também, porque transferem para o cidadão utente e cliente uma parte importante do processo de produção e gestão dos serviços e, nessa medida, condicionam, discriminam e deixam para trás aquela parcela significativa dos cidadãos destituídos dessas competências; ora, a cidade do futuro não pode permitir que isto aconteça, por isso, a aprendizagem ao longo da vida e a literacia dos cidadãos são bens comuns fundamentais da cidade do futuro;
3- A mobilidade suave e a prestação de serviços ambulatórios
A interoperabilidade dos modos de transporte e a sua adequação às condições de acessibilidade e mobilidade dos cidadãos mais desfavorecidos, podem e devem ser complementados com uma adequada oferta de serviços ambulatórios, em especial, aos lugares mais remotos de cada cidade e concelho; ou seja, a acessibilidade, o transporte diferenciado e a prestação de serviços ambulatórios como bens comuns fundamentais da cidade do futuro;
4- Melhor saúde pública e uma nova relação entre urbanismo e ecologia
Numa sociedade cada vez mais envelhecida, as condições de produção e oferta de saúde pública são fundamentais para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos; assim, a mobilidade elétrica, os materiais usados nas habitações, a eficiência energética dos edifícios e a bio regulação climática dos mesmos, as infraestruturas ecológicas e os corredores verdes, os jardins, os parques e as hortas, formam uma categoria de bens e serviços comuns que importará implementar; ou seja, o nexo de causalidade e interdependência entre urbanismo, ecologia e saúde pública como um bem comum inestimável da cidade do futuro;
5- Menos posse e propriedade e mais acesso e prestação de serviços
A desmaterialização das operações e o acesso rápido via online aos bens e serviços alargam o leque das opções de compra e venda, mas, também, de troca, de aluguer, empréstimo e venda; ou seja, de plataformas colaborativas, na nossa aldeia, vila, bairro ou cidade, somos parte de um marketplace que coloca e converte os nossos bens em serviços e, logo, em receita e remuneração; ou seja, com plataformas colaborativas adequadas made in os bens dos residentes e os serviços que prestam podem ser administrados em modo colaborativo o que altera bastante a face da cidade do futuro e exige uma adequada regulação da prestação de serviços da chamada economia colaborativa;
6- Mais campo na cidade e mais cidade no campo, uma outra arquitetura de relações
A agricultura urbana, nas suas várias modalidades, a agricultura periurbana, os parques agroecológicos municipais e intermunicipais, as quintas onde se produzem os bens com denominação de origem e os terroirs com um património natural e cultural valioso, são instrumentos preciosos para constituir os sistemas produtivos locais (SPL) que poupam e armazenam CO2 e reciclam os resíduos para reutilizar no processo produtivo local; ou seja, a cidade-rede do futuro, como parte do metabolismo circular, criará uma malha capilar apertada com o seu universo rural, um verdadeiro sistema de vasos comunicantes e um bem comum inestimável onde todos os cidadãos podem circular livremente;
7- Mais pluriatividade e plurirrendimento, os terceiros-lugares colaborativos
Uma das imagens de marca da cidade do futuro e do seu metabolismo urbano diz respeito aos terceiros lugares colaborativos que ela for capaz de criar com sucesso; estamos a falar de estruturas de acolhimento e partilha de conhecimento e experiência em formatos muitos variados, fora dos lugares habituais da residência e do trabalho, onde os jovens e os menos jovens encontram uma retaguarda tecnológica, profissional, relacional e colaborativa fundamental que acolhe inúmeras modalidades de pluriatividade e plurirrendimento e que vai do teletrabalho à formação de start up e da aprendizagem permanente até à prestação de serviços, num ambiente informal que é, em si mesmo, um bem comum colaborativo fundamental;
8- Mais e melhor espaço público, uma nova arquitetura urbana
Tudo o que já dissemos anteriormente tem um impacto radical e sistémico sobre a geomorfologia da cidade do futuro e, muito em especial, sobre a arquitetura dos seus espaços públicos. A cidade torna-se mais orgânica e biofísica, por um lado, mas, sobretudo, com mais e melhor ecologia humana, um lugar de paz e prosperidade onde os únicos privilegiados são os grupos mais desprotegidos e vulneráveis; ou seja, uma arquitetura do espaço público mais aberta, mas, também, mais interativa com a realidade aumentada e virtual, onde a acessibilidade e a mobilidade são concebidas em nome da liberdade e do cuidado pelos cidadãos mais carenciados, deve ser considerada como um bem comum inestimável;
9- A cidade do futuro como placemaking, a imagem da cidade e a qualidade dos serviços culturais e criativos
A cidade-rede do futuro, para lá dos hiper-lugares (Lussault, 2017) e dos não-lugares (Augé, 1992) que são quase inevitáveis, deve, sempre que possível, realizar e experimentar os terceiros lugares (Oldenburg, 1991) como espaços de acolhimento onde se constrói a cidade como placemaking, isto é, a cidade como entidade inteligente e criativa onde todos os dias se refresca e renova a sociabilidade colaborativa e cooperativa; ou seja, a cidade do futuro atribui um cuidado muito particular às atividades culturais e criativas pois são elas o motor fundamental da paz e da liberdade, razão pela qual deve existir uma atenção especial ao incentivo e regulação dessas atividades, consideradas um bem comum colaborativo essencial;
10- Cidade do futuro, rede de vilas e cidades e rendimento mínimo de existência
A cidade do futuro será uma cidade em rede ou região-cidade, uma rede de vilas e cidades que partilha os recursos escassos disponíveis, que sobe na escala das operações, que melhora as economias de aglomeração, que oferece um leque mais variado de bens e serviços comuns de modo mais eficiente, que presta melhor regulação territorial e melhor política de relações externas; ou seja, a cidade-rede é o enquadramento apropriado para a definição e provisão de bens comuns colaborativos e, muito em especial, para aquele que será, provavelmente, o principal bem comum colaborativo da cidade do futuro, o rendimento mínimo de existência que, desde já, deve ser objeto de alguns ensaios exploratórios dirigidos aos grupos mais desprotegidos da cidade-rede.
Nota Final
É algo estranho que a cooperação descentralizada entre territórios, sendo um recurso relativamente abundante e barato, não seja ativada mais frequentemente. Em Portugal, por exemplo, as pequenas vilas e cidades do interior, dotadas com stocks de população muito reduzidos e envelhecidos, prestam-se muito bem a esta partilha de recursos escassos sob a forma de uma rede de cidades, imbuída de espírito colaborativo e servida por uma estrutura de missão dedicada à causa dos bens e serviços comuns.
Finalmente, é preciso alertar que, numa sociedade cada vez mais envelhecida e com grupos sociais muito desprotegidos, o investimento em tecnologia é importante, mas o investimento em humanidade é muito mais relevante. De uma vez por todas, a cidade do futuro não pode prescindir nem da ética do cuidado nem da felicidade dos seus cidadãos seniores. Eles são os nossos avós e os nossos pais e a fonte dos nossos valores e princípios comuns de solidariedade e fraternidade. Insisto neste tópico. A rede de vilas e cidades, a região-cidade, será a verdadeira cidade do futuro. Se uma boa administração ajudar, teremos menos veículos motorizados, melhor saúde pública, uma economia mais autónoma, robusta e circular, mais serviços de proximidade e ambulatórios, mais e melhor espaço público, mais tempo livre e melhores atividades culturais e criativas, no final, uma cidade-rede mais próspera e feliz. Não é fácil, mas é possível, mesmo muito provável. Por que não tentar?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico