Os ignorantes da covid e os idiotas de Trump
Chamar ignorante a quem está a chegar ao limite da sua subsistência material é um insulto que apenas cria ressentimento.
Tem gerado muitos aplausos designar como ignorantes todos os que vão expondo dúvidas sobre como a pandemia tem sido gerida, nos últimos tempos, do ponto de vista político, sanitário e científico. Mas não será fácil de mais? Não se estará a misturar tudo? E será que esse apontar de dedo é produtivo?
É verdade. Há perigosos negacionistas. Teorias da conspiração absurdas. E grupos extremistas que instrumentalizam politicamente a situação. Mas é preciso ter a sensatez de não confundir. Há também cada vez mais pessoas que se manifestam porque estão confusas ou angustiadas, não por negação da realidade, mas porque há medidas que são aplicadas e têm efeito directo na sua realidade, na vida socioeconómica, no trabalho, na saúde e liberdades.
Chamar ignorante a quem está a chegar ao limite da sua subsistência material e força vital é um insulto que apenas cria ressentimento. As responsabilidades individuais que nos são exigidas são essenciais para o colectivo. Mas isso não pode servir para a diluição das obrigações políticas e é nítido nesta fase que tem sido insuficiente o investimento feito no crucial fortalecimento do sistema de saúde quando se previa um agravamento da pandemia. Da mesma forma que se exige, da saúde, uma comunicação clara, de forma a reduzir contradições, e da ciência, verdade e ponderação, tradução de complexidade com simplicidade, para não se criarem expectativas artificiais, num terreno onde se lida com modelos e hipóteses e não com certezas absolutas.
O contexto é difícil. Há cansaço. Perda de confiança das pessoas umas nas outras e nas instituições, pelas muitas incoerências, algumas delas de carácter inevitável. Mas por isso mesmo é que as decisões têm de ser bem fundamentadas. Desde o primeiro momento que se percebeu que iríamos embater em muitas ambiguidades. É também por isso que tem existido tolerância em relação a quem decide. Mas esse espaço está a diminuir.
No fim de contas, políticos, médicos ou cientistas, e pessoas em geral, querem ser compreendidos e compreender. Os negacionistas são um problema, mas circunscrito. Precisamos é de inteligibilidade e visões que não sejam apenas parcelares do que está a acontecer e lidar com o sentimento de injustiça e desespero de muitas vidas. Para isso é preciso cada um sair da sua bolha. Comunicar entre pares é fácil. Mas nesta fase é preciso muito mais.
Em parte, é isso que explica também que, passados quatro anos, tenhamos sido outra vez surpreendidos com a votação expressiva em Trump. Continuamos sem perceber quem são esses votantes e as suas razões. Identificamos à sua volta racistas, fascistas, negacionistas ou supremacistas. Mas é pouco. Na sua maior parte parecem ser apenas pessoas desnorteadas e zangadas, sentindo-se injustiçadas pelas desigualdades sociais, sem conseguirem perceber muitas vezes as contradições do sistema e sentindo-se excluídas deste. Chamamos-lhe idiotas e acusamo-las de se negarem a ver quem é realmente Trump. Mas, e se também nós, estivéssemos em negação?
É tentador vê-lo como um irresponsável, uma anomalia, um acidente, que coloca em causa a democracia. E se fosse ao contrário? Se em vez de ser causa, ele fosse o efeito e a prova definitiva de que estamos a viver no interior de um sistema em putrefacção, com uma dinâmica destrutiva, que é capaz de produzir figuras que fazem perigar as democracias? Trump é mais um sintoma grave da situação planetária em que vivemos, e que a pandemia veio intensificar, do que a origem de todos os males. É preciso ter a sensibilidade de escutar o mundo, mesmo os que achamos ignorantes ou idiotas, e inclui-los numa lógica de transformação, com políticas e respostas novas. Só dessa forma estaremos a salvo de fenómenos como Trump, a democracia não se degradará e a pandemia será superada.