O BCE e o paradoxo de Malestroit

Que proximidade pode existir entre o Banco Central Europeu, onde existe um conhecimento profundo das questões monetárias, e o pensamento de Jean de Malestroit?

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Jean de Malestroit foi um conselheiro do Tribunal de Contas de França do século XVI, que ficou conhecido por explicar a inflação observada na sua época como sendo o resultado da desvalorização da unidade de conta, a libra tornês, em relação ao ouro e à prata em que eram cunhadas as moedas usadas nas trocas. Argumentava o conselheiro que os preços em unidades de conta de todos os bens, incluindo o ouro e a prata, subiam na mesma proporção, e daí resultava que a quantidade de ouro e de prata com que se compravam os bens não se alterava. A conclusão de Malestroit era um paradoxo, na medida em que admitia que os preços de todos os bens podiam subir sem que fosse necessário o aumento da quantidade de moeda metálica, para alimentar essa subida.

A favor da argumentação de Malestroit estava o facto de, em períodos anteriores, terem ocorrido processos de desmaterialização da moeda que consistiam em, com a mesma quantidade de metal precioso, cunhar moedas de valor nominal mais elevado. Essa não era, no entanto, na época de Malestroit, a principal causa da subida dos preços, como demonstrou o seu contemporâneo Jean Bodin que, com recurso a dados, pôs em evidência que era o aumento da abundância de ouro e de prata que sustentava a inflação então observada. Bodin foi um dos precursores das explicações da inflação que se tornaram dominantes na teoria económica e que, em linguagem contemporânea, se resumem no princípio de que a inflação, definida como a subida generalizada e prolongada dos preços, só pode ocorrer em resultado do aumento da quantidade de moeda a uma taxa de crescimento superior à do produto durante um período longo.

Assim sendo, que proximidade pode existir entre o Banco Central Europeu, onde existe um conhecimento profundo das questões monetárias, e o pensamento de Malestroit?

Acontece que o período de inflação que atravessámos nos últimos três anos foi desencadeado pela interrupção das cadeias de distribuição e estrangulamento em diversos sectores que resultaram da pandemia de covid-19, agravados, na Europa pelo aumento dos custos da energia. Malestroit, se voltasse agora a este mundo, ficaria feliz por ter encontrado uma causa da inflação alheia às variações da quantidade de moeda. Foi por ter essa causa que este período inflacionista está a desaparecer quase tão rapidamente como apareceu.

Tivesse ele surgido na sequência de aumentos significativos da procura agregada e outro galo cantaria, pois o tempo necessário à diminuição da inflação seria muito mais prolongado, como aconteceu nas décadas que antecederam o lançamento do euro. Não faltavam condições para alimentar um período inflacionista prolongado, se fosse essa a causa do arranque inicial da subida dos preços.

Com efeito, tanto a Base Monetária, moeda emitida pelos bancos centrais, como os agregados M1, M2 e M3, que correspondem à quantidade de moeda e outros ativos líquidos fornecidos à economia pelo conjunto do sistema bancário, tiveram na Zona Euro, durante os seis anos anteriores ao desencadeamento do último período inflacionista, taxas de crescimento excessivamente elevadas comparativamente com as taxas baixíssimas de crescimento do produto. Enquanto o PIB dos países da zona euro atravessava taxas de crescimento bem abaixo de 2% e, por vezes, próximas de zero, o agregado M1, composto por notas em circulação mais depósitos à ordem, cresceu 13,17% em 2015, e durante os anos seguintes, até 2022, nunca cresceu abaixo de 7%. Os agregados mais extensos, M2 e M3 acompanharam, de forma mais ou menos paralela, o crescimento de M1. A taxa de crescimento da Base Monetária foi ainda mais elevada do que a dos agregados monetários, tendo atingido os valores de 38,62% em 2016 e 45,43% em 2021.

Estes níveis de variação dos agregados monetários fizeram com que, quando se desencadeou o último período inflacionista, existisse, na zona euro, uma quantidade muito elevada de liquidez, que o BCE reduziu um pouco, ao mesmo tempo que subia as taxas de juro para tentar conter a inflação. Para tal, o BCE e os bancos centrais nacionais levaram a cabo algumas operações de absorção de liquidez, vendendo uma parte da enorme carteira de activos, sobretudo de dívida pública, adquirida no âmbito dos programas de compra de activos que vigoravam desde 2014. A perda de valor dessas carteiras, resultante da subida das taxas de juro, foi uma das causas dos prejuízos sofridos nos últimos anos pelos bancos centrais da zona euro.

Dado que, se a causa do processo inflacionista agora em declínio tivesse sido outra, teria sido muito mais lenta e dolorosa a sua diminuição, vale a pena questionar o papel efectivo das taxas de juro na actual política monetária. Isto é, a subida das taxas de juro contribuiu para a descida da taxa de inflação, ou serviu apenas para impedir que esta acelerasse de forma acentuada e atingisse valores mais elevados?

A causa inicial deste processo inflacionista sugere que a segunda hipótese é a mais provável. Se assim for, as recentes descidas das taxas de juro do BCE terão de ser encaradas mais como um alívio da vigilância sobre a inflação, do que o resultado duma verdadeira vitória sobre o processo inflacionista. E assim, por mero acaso da sorte, o BCE esteve num papel próximo de Malestroit, quando seria mais provável que tivesse estado no papel de Jean Bodin.

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