Parasita da malária consegue adaptar-se quando não há chuva
Laboratório com portugueses na Alemanha percebeu como o parasita da malária na estação seca aguarda pela chegada da estação chuvosa, quando há casos sintomáticos de malária.
O principal parasita que causa malária – o Plasmodium falciparum – sobrevive sem causar doença nos humanos durante a estação seca e aguarda “silenciosamente” pela estação chuvosa e o retorno dos mosquitos. Uma equipa com cientistas portugueses descreve na última edição da revista científica Nature Medicine como é que tudo isto acontece.
Os parasitas da malária são transmitidos entre os humanos através de picadas de mosquitos infectados. Depois de terem entrado no corpo humano, esses parasitas conseguem invadir glóbulos vermelhos, multiplicar-se e rebentá-los para depois invadir outros glóbulos vermelhos de forma cíclica. É durante a fase sanguínea que se dão sintomas como as febres altas e dores no corpo.
“No entanto, em muitas regiões do mundo onde a malária é endémica, durante a época seca a água necessária à reprodução dos mosquitos desaparece, interrompendo-se assim a cadeia de transmissão da malária durante vários meses”, descreve a equipa num comunicado sobre o trabalho. Nessas regiões, há todo o ano pessoas com infecções assintomáticas, mas os casos com sintomas só aparecem na época das chuvas – quando os mosquitos reaparecem.
Durante o seu pós-doutoramento nos Institutos Nacionais de Saúde (nos Estados Unidos), Sílvia Portugal percebeu que durante a estação seca as crianças infectadas não perdiam imunidade mais devagar do que as crianças que não mantinham essa infecção. “Isso levou-me a criar a hipótese de que não havia uma activação do sistema imunitário por parte dos parasitas que fazem a ponte entre as duas épocas de transmissão”, relembra a cientista. Na altura, pensou logo que pudesse haver uma estratégia do parasita para manter os níveis de parasitemia (presença de parasitas vivos no sangue) baixos durante a época seca.
Sílvia Portugal acabou por criar o seu próprio laboratório na Universidade de Heildelberg (na Alemanha) – o Portugal Lab – para tentar descobrir as estratégias do parasita de sobrevivência na estação seca. Em 2017, recebeu mesmo 1,5 milhões de euros de uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação (ERC) para estudar o Plasmodium falciparum durante a estação seca em áreas de transmissão sazonal da doença. O objectivo era perceber como o parasita da malária sobrevive sem a presença dos mosquitos que o transmitem (os anófeles) durante vários meses.
Para analisar essa situação, a equipa de Sílvia Portugal foi várias vezes a Bamako (no Mali), onde seguiu as infecções de um grupo, com cerca de 600 malianos entre os três meses e os 45 anos, durante tanto a estação seca como a chuvosa. Este trabalho foi feito com a equipa de Boubacar Traoré, da Universidade de Ciências, Técnicas e Tecnologias de Bamako. “Isolámos os glóbulos vermelhos do sangue de indivíduos incluídos no estudo, quantificámos os parasitas e realizámos as experiências”, refere a cientista portuguesa.
Agora, obtiveram-se vários resultados que mostram que parasitas da malária conseguem persistir no corpo humano durante os meses da época seca. Aí, mantêm uma carga parasitária baixa que não causa doença e garantem a sua sobrevivência e a do hospedeiro até à época chuvosa.
Menor capacidade adesiva
Vejamos quais foram os vários resultados. Viu-se que as cargas parasitárias na estação seca são sempre muito mais baixas do que nos casos de malária na estação chuvosa. Depois, verificou-se que a resposta imunitária das crianças com ou sem parasitas na estação seca era semelhante, o que significa que não há activação do sistema imunitário por parte dos parasitas nos casos assintomáticos na estação seca.
A nível da genética, observou-se que os parasitas que causam malária na estação chuvosa são semelhantes geneticamente aos parasitas que persistem na estação seca. “Mas a transcrição do genoma [simplificando, a leitura dos genes] é muito diferente”, alerta Sílvia Portugal. Já com sangue recolhido de crianças, viu-se que os parasitas se replicavam de forma semelhante na estação seca e na chuvosa. “Contudo, levam tempos diferentes a atingir esse aumento”, salienta a cientista. “Estranhamente, os parasitas da estação seca aumentam mais rapidamente e isso foi a chave para percebermos o que se estava a passar.”
Sabe-se que o ciclo de replicação destes parasitas é de 48 horas. Nessas 48 horas, estão inicialmente em circulação, mas, à medida que se desenvolvem, alteram-se a si e às células hospedeiras (os parasitas estão dentro delas) e tornam-nas adesivas às paredes dos vasos sanguíneos para evitar a eliminação pelo baço (órgão de grande importância na eliminação de glóbulos vermelho velhos ou danificados). Deixam então de ser vistos em circulação. Agora, observou-se que na estação seca a capacidade de tornar a célula adesiva é menor porque se observam os parasitas em circulação mais tempo – até cerca de 18 horas do ciclo replicativo –, o que até se nota no tamanho dos parasitas, que são, frequentemente, maiores. Na estação chuvosa só se conseguem ver em circulação cerca de sete horas.
Quanto aos contributos deste trabalho, Sílvia Portugal refere que perceber as estratégias do parasita na estação seca ajuda a definir formas de o combater. “Para se alcançar o objectivo de erradicar a malária, será necessário atingir os reservatórios silenciosos de assintomáticos e não apenas os de indivíduos com a doença”, nota.
A cientista diz que há “pano para mangas” em questões para futuros trabalhos. Por agora, estão já a tentar responder a questões como: como se poderão eliminar os reservatórios de parasitas persistentes na estação seca, para que não estejam presentes na estação chuvosa?
Este trabalho teve também a colaboração de cientistas do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID) dos EUA, bem como de Joana Martins e Nuno Osório, da Escola de Medicina, da Universidade do Minho. A coordenar tudo esteve o Portugal Lab – assim designado devido ao apelido de Sílvia Portugal – e onde se fala muito em português. Além de Sílvia Portugal, o laboratório é integrado pela portuguesa Carolina Andrade, pelo espanhol Richard Thomson Luque, que trabalhou no Brasil e fala português, e pela brasileira Nathalia F. Lima.
“Ouve-se amiúde português no laboratório. Mesmo quem é da Alemanha, da Síria, da Gâmbia, do Canadá e da Dinamarca sabe dizer um ‘vamos’ quando é para pôr mãos à obra”, conta Sílvia Portugal. Até ao final do ano, a cientista está a mudar o seu laboratório para o Instituto Max Planck para a Biologia das Infecções e passará a ser o Laboratório da Biologia do Parasita da Malária. “Mas acho que seremos sempre o Portugal Lab”, diz a sorrir.