Um zero à Esquerda
O Bloco de Esquerda desperdiça-se num destino de onde, com tristeza reconheço, dificilmente poderá voltar atrás.
“Nós recusamos o conceito de arco da governação como delimitando quem são os Partidos representados na Assembleia da República que têm acesso e legitimidade a partilhar responsabilidades governativas”.
Esta foi a premonitória escolha de vocábulos com que António Costa implodiu com um conceito, anos antes ardilosamente arquitetado pelo maquiavelismo sapiente de Paulo Portas, no sentido de incluir os centristas e, simultaneamente, excluir o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda de participar na construção de soluções democráticas, que melhorassem a vida dos portugueses.
Se em parte os congressos partidários se dão cada vez menos a novidades disruptivas, relembro-me de no longínquo 30 de novembro de 2014 escutar com entusiasmo as palavras do recém-eleito líder do PS. Recordemos, aliás, que vivíamos os féis de um País enclausurado no estigma “passos coelhista” da governação do “muito para além da Troika”, pelo que esta posição representou uma pedrada então incompreendida no charco, que abriria mais tarde as portas para a mais tranquila revolução que Portugal vivenciou nos últimos vinte anos: a “Geringonça” que, sem voar, funcionou em prol da dignidade e qualidade de vida dos nossos concidadãos.
Cerca de um ano depois, a 10 de novembro de 2015, corporizando a maioria parlamentar conferida pelos seus eleitores, PS, BE, PCP e PEV assinaram, em São Bento, os acordos inconstitucionalmente exigidos pelo então Presidente Cavaco Silva.
Durante quatro anos de vigência do XXI Governo da República, foram operadas todas as aritméticas impossibilidades. A recuperação da dignidade e do emprego, as melhores contas públicas do Portugal democrático, a recuperação do prestígio e reconhecimento internacionais, os progressos nas pensões e no salário mínimo, a justa elevação dos orçamentos sectoriais da Educação, Saúde e Cultura, enfim, a prova de que a Governação à Esquerda era não só possível quanto constituía, mais do que mero pin na lapela, a afirmação plena de um Portugal melhor.
Volvidos 6 anos, no mesmo dia em que o PSD desafia — nos Açores — o Chega para uma coligação, o Bloco de Esquerda anunciou o seu voto contra um Orçamento Geral do Estado, marcadamente justo, que não só define a criação de uma prestação social compensadora das desigualdades geradas pela pandemia, quanto confirma um crescimento de 2.555 milhões de euros de transferências para o Serviço Nacional de Saúde, coloca o investimento na Educação em valores recorde, exclui qualquer verba do exercício orçamental para o Novo Banco, reforça uma vez mais pensões e salário mínimo nacional, entre outros avanços que recusam somar à crise pandémica um centímetro de austeridade que se constate.
Após uma crise gerada pela inusitada e inesperada propagação, à escala global, da Covid-19, perante a perplexidade de todos quantos reconheceram o trabalho que a esquerda parlamentar edificou, fechado na sua redoma de hipersensibilidade mediática, o BE anunciou que iria somar os seus votos ao Chega, à Iniciativa Liberal, ao CDS e ao PSD.
Como escreveu, acertadamente, a líder do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, Ana Catarina Mendes, “não é o Orçamento que falha à emergência social que estamos a viver. É o Bloco de Esquerda que votando contra, ao lado da direita, abandona Portugal e os portugueses”.
Se é mais cómodo estar do lado do protesto do que do lado da solução, a formação mentorada por Francisco Louçã escolheu o seu lado da barricada. Voltar à génese. Regressar às raízes. Escolher ser um zero à esquerda da governação, desperdiçando o contributo relevante que ela própria prestou enquanto resistiu à natureza de si mesma.
A pandemia mudou a nossa vida de forma indelével, abalou as convicções de tudo o que nos é mais íntimo e, em seis meses, retirou 22 mil milhões de euros à Economia nacional. O desafio é inédito, imenso e colossal. Tudo mudou, até para aqueles que se transmutaram para voltar ao acantonamento do protesto inicial. O Bloco de Esquerda desperdiça-se num destino de onde, com tristeza reconheço, dificilmente poderá voltar atrás.