De voluntário a obrigatório: StayAway
Uma suposta obrigatoriedade da StayAway corresponderia a uma grosseira deslealdade em relação ao compromisso tácito do Governo com os cidadãos. Não vale tudo em tempo de pandemia.
Não, a aplicação móvel StayAway Covid nunca foi um dever cívico e jamais poderá ser obrigatória em democracia!
O dever de todo e qualquer cidadão em tempo de pandemia é adoptar comportamentos que, simultaneamente, o protejam a si da possível infecção e protejam os seus concidadãos de um eventual contágio, recorrendo a meios proporcionados que estejam ao seu alcance ou lhe sejam gratuitamente disponibilizados e que estejam cientificamente validados. Nada mais.
O uso da máscara em público é um recurso de fácil utilização, amplamente acessível e que tem sido disponibilizado por entidades públicas e privadas, cujos benefícios ultrapassam largamente o incómodo e, essencialmente, de eficácia comprovada. Com efeito, até o bom senso reconhece que, a partir da confirmação da transmissão do SARS-CoV-2 pelas secreções respiratórias, gotículas, o uso generalizado de máscara, cobrindo as vias respiratórias, cria duas barreiras à possibilidade de infecção, reduzindo consideravelmente o risco de contágio.
O mesmo não se verifica com uma app de rastreio digital, como a StayAway, desde logo pela catadupa de “ses” que suscita. A aplicação só poderá ser eficaz se todos os portugueses a descarregarem, não apenas no trabalho e no ensino – como diz o Governo –, mas também em família e com amigos, isto é, de dia e de noite; se também os estrangeiros que vivem em Portugal ou que nos visitam a descarregarem; se todos os cidadãos em território português forem sujeitos a testes regulares; se todos dispuserem de um telemóvel compatível com a StayAway, com acesso a dados móveis e bluetooth ligado; se a aplicação estiver a funcionar correctamente, sendo que em praticamente todos os países se têm registado frequentes problemas; se a pessoa testada positiva para a covid divulgar a informação, sendo que, se a StayAway se tornasse obrigatória, a divulgação dessa informação de saúde passaria a ficar a cargo de outrem que não o próprio. E quem ou como se processa a fiscalização? Através da invasão do telemóvel de cada um e ingerência nos dados pessoais?
Uma suposta obrigatoriedade da StayAway, nos termos propostos e perante os incontornáveis “ses” seria bastante ineficaz. Não será, portanto, de surpreender que ainda não tenha sido validada cientificamente. Além disso, o ónus que implicaria para o cidadão comum, nomeadamente financeiro, mas sobretudo de invasão da sua privacidade e subtracção dos seus direitos individuais, não seria compensado pelos eventuais benefícios que pudesse produzir. Violar-se-ia, assim, o princípio da proporcionalidade, um princípio ético e jurídico estruturante nas políticas públicas, na exigência de adequação dos meios aos fins. A proposta é, pois, absurda.
Uma suposta obrigatoriedade da StayAway corresponderia também a uma grosseira infracção das recomendações da Comissão Europeia e, diria que ainda mais grave, uma deslealdade em relação ao compromisso tácito do Governo com os cidadãos. A StayAway é um produto da Recomendação da Comissão Europeia, de 8 de Abril, para que todos os Estados-membros desenvolvessem uma aplicação móvel de rastreamento de contágios, sublinhando-se sempre o carácter voluntário da sua utilização por parte do cidadão europeu. Este tipo de app apenas é obrigatório em regimes ditatoriais, como na China, e de ampla utilização em sociedades profundamente disciplinadas, como as asiáticas ou Israel, e nem nestes países tem evitado segundos períodos de confinamento. Mas a sua obrigatoriedade representaria principalmente a negação da informação oficial transmitida aquando da disponibilização da app, de que seria sempre voluntária, e a violação da confiança suscitada pelo controle absoluto que o cidadão deteria, desde o descarregar da app até à divulgação da sua situação clínica. Não vale tudo em tempo de pandemia.
Uma suposta obrigatoriedade da StayAway evidenciaria de forma gritante a pertinência do argumento da rampa deslizante: hoje invocam-se circunstâncias para legitimar como obrigatório o que antes foi proposto como voluntário; amanhã defende-se que a obrigatoriedade não pode ficar restringida aos ambientes laborais nas empresas, nas escolas e ensino académico, forças armadas e de segurança e à administração pública, mas se deve estender também, por exemplo, ao acesso a hospitais e centros de saúde ou ainda mais simplesmente ao quotidiano de todos, qual chip de saúde pública sem o qual o acesso seria vedado a espaços pré-definidos, até que não sobrem excepções; depois, também o compromisso de que uma app de rastreio da covid-19 seria sempre voluntária e sem recolha de dados, descentralizada, passa a admitir o registo de dados porque, afinal, também este se pode justificar ao contribuir para a diminuição do risco de contágio; seguidamente, é a geolocalização, rejeitada como obrigatória em todo o mundo ocidental, que encontrará um argumento para se impor. A mera sugestão feita perfila-se autocrata no plano político, inconstitucional no plano jurídico, e imoral no plano das relações interpessoais.
A hipótese de obrigatoriedade de uso da StayAway é (além de inviável) tão profundamente insustentável em democracia e no respeito pelos cidadãos que não será credível obter a ratificação do Parlamento. Entretanto, sobra a expressão de uma tendência preocupante, a que todos os comentadores se vinham referindo desde o início da pandemia, mas que não queríamos supor possível em Portugal: a de que a pandemia seja utilizada para cortar direitos e liberdades fundamentais e asfixiar a vivência democrática. Neste caso, a única resposta proporcional seria a desobediência civil.