“Estive nove horas sozinha”: o relato de um parto não acompanhado
Durante mais de seis meses as regras da Direcção-Geral da Saúde não eram claras em relação aos partos. Há uma semana essas orientações foram actualizadas para permitir que os acompanhantes estejam com as grávidas, como antes da pandemia.
Tiago é o segundo menino da família Cardim. Nasceu a 13 de Agosto, por volta das 13h no Hospital Garcia de Orta, em Almada. Ainda não tem noção que é um bebé da pandemia, mas os seus pais, Ricardo e Vanessa, sabem bem que o seu parto foi diferente do habitual, pelo menos do do seu irmão Daniel. “Estive nove horas sozinha”, resume a mãe ao PÚBLICO. Durante mais de seis meses as regras da Direcção-Geral da Saúde (DGS) não eram claras em relação aos partos. Há uma semana essas orientações foram actualizadas, permitindo, de forma “inequívoca”, a presença de um acompanhante durante o parto.
Depois de uma gravidez atípica passada maioritariamente durante a pandemia, o casal dirigiu-se ao hospital a 12 de Agosto pois a mãe começou a sentir contracções, com um espaçamento de três minutos. Foi aconselhada a voltar para casa devido à pandemia. “Fizemos uma caminhada no Parque da Paz e depois, de madrugada, por volta da 1h30, voltei para o hospital porque já não aguentava e aí já fiquei”, conta Vanessa Cardim.
Além das diferenças já sentidas para a gravidez de Daniel – como as consultas e exames sem a presença do pai, ou a preocupação sobre o novo coronavírus – foi a partir deste momento que a mãe sentiu que “estava num universo paralelo”. “Foi extremamente difícil emocionalmente comparado com a gravidez do Daniel”, o primeiro filho.
A entrar no hospital perguntou “e o meu marido?” ao qual lhe responderam que Ricardo teria de “ficar lá fora” até ao momento da expulsão (quando o bebé sai), situação confirmada pelo hospital ao PÚBLICO. A unidade justifica que se trata de uma medida “para minimizar os constrangimentos do distanciamento físico”. “Fiquei sozinha nove horas, os médicos e enfermeiros vinham para me ver, mas fiquei completamente sozinha. Foi extremamente difícil emocionalmente comparado com a gravidez do Daniel porque não tinha ninguém ao meu lado”, continua a mãe. No bloco de partos, “ouvia gritos e choros vindos de todos os lados” e só pensava: “Daqui a nada chega a minha vez e eu aqui sozinha...”. “Só queria alguém para dar a mão ou simplesmente para estar ali”, insiste.
Para a obstetra Susana Santo, da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF), o ideal é que tudo seja o mais semelhante possível ao período de pré-pandemia. “As grávidas não devem ser desacompanhadas”, declara, explicando que, ainda assim, em algumas instituições tal possa acontecer devido à falta de recursos humanos. O acompanhamento “é muito importante para o suporte emocional”, justifica.
Testes rápidos podem ajudar a gerir acompanhamentos
Vanessa fez um teste de diagnóstico à covid-19 quando entrou no hospital. “Enquanto não há resultado parece que somos umas leprosas”, recorda. No entanto, ao marido não foi permitido fazer o mesmo. “Ele até se dispôs [a fazer o teste] para poder assistir” ao parto, refere. Para Susana Santo, idealmente, o pai ou acompanhante também deveria fazer o teste.
Para a mãe, o período antes da expulsão é o mais difícil e aquele em que sentiu mais falta do marido. A obstetra da SPOMMF, explica que “quanto menor for o tempo de exposição [caso a pessoa esteja infectada] melhor”, mas “se o critério [do hospital] é o critério da segurança, a ideia é entrar quando tem teste negativo”, daí a importância da realização do mesmo por parte do acompanhante.
Susana Santo refere ainda que, numa situação ideal, tanto a mãe como o acompanhante têm um teste até 72 horas antes do parto, mas tal é mais fácil de controlar em partos induzidos ou cesarianas, em que a data e hora é conhecida. Tendo em conta a demora dos testes PCR, na opinião da especialista a disponibilização de testes rápidos na sala de parto “é um factor muito importante para a gestão da presença de acompanhantes”.
“Nem sempre é possível testar o pai e obter resultado em tempo útil, nomeadamente em situações em que o parto ainda está em decorrer. Nos casos de partos programados é mais fácil a realização de testes ao acompanhante”, reconhece fonte do Hospital Garcia de Horta.
“A experiência do Daniel foi uma experiência maravilhosa e foi no mesmo hospital”, recorda Vanessa Cardim, acrescentado que para quem seja mãe pela primeira vez, em circunstâncias de pandemia, a experiência “pode ser traumatizante”. Quanto ao pai, Ricardo confessa que ao longo do parto de Tiago se sentiu “impotente”.
“O pior de tudo é o pós-parto”
“A Vanessa esteve três dias sozinha”, testemunha o marido, explicando que o hospital não deixava entrar visitas, nem a sua. E, durante esse período de tempo, Ricardo Cardim não pode fazer nenhum teste para poder entrar.
Depois do nascimento de Tiago, a mãe esteve no mesmo espaço que outras mulheres nas mesmas circunstâncias. “Éramos três mães em ponto de ebulição”, pois o momento em que têm “algum descanso e alguma ajuda é quando chega o pai para a visita”, mas isso não aconteceu. Por isso, caso quisessem ir à casa de banho ou tomar um duche, “tinham de confiar nas outras mães” pois as enfermeiras também estavam ocupadas. “O pior de tudo é o pós-parto. Não é fácil, lidamos com questões hormonais, há a questão da amamentação... Como é que lidamos com o nosso emocional, não dormimos e temos de cuidar do nosso bebé?”
A obstetra Susana Santo insiste que se deve “tentar que o período pós-parto seja o mais parecido com o período pré-pandemia”, mas salvaguarda que tudo depende de instituição para instituição. Por exemplo, “há instituições privadas que permitem que o acompanhante fique durante todo o internamento, mas não pode abandonar o hospital; há outras que permitem que o acompanhante entre com teste negativo e volte no período de visitas”.
“O suporte é fundamental” reforça a especialista, acrescentando que “esse período e muito importante porque são momentos de ligação entre pai e bebé e podem ser muito facilitadores para a grávida”.
O Hospital Garcia de Orta explica ao PÚBLICO que também no pós-parto “é necessário ter em conta o distanciamento físico e a restrição de movimentos e concentração das pessoas”. Por este motivo, “existe limitação de circulação e é evitada a concentração de pessoas em espaços reduzidos”, limitando-se assim “o risco de disseminação” do novo coronavírus.
Orientações dos partos actualizadas
Depois de meses de confinamento e novas regras por causa da pandemia, assim como de queixas de grávidas e de organizações, a DGS actualizou, há uma semana, as orientações técnicas sobre a gravidez e o parto durante a pandemia passando a haver a indicação “inequívoca” de que é autorizada a presença de um acompanhante durante o parto. “E fica dito claramente que as unidades hospitalares devem assegurar as condições necessárias para garantir a presença de um acompanhante durante o parto”, reforçou a directora-geral, Graça Freitas.
O acompanhante não pode apresentar sintomas de covid-19 nem ter estado com alguém infectado nos últimos 14 dias. Deve ainda estar com máscara cirúrgica e com equipamento de protecção individual adequado. Além do mais, não deverá estar em “contacto com outras pessoas internadas” ou outros utentes do hospital.
Em declarações ao PÚBLICO, Susana Santo da SPOMMF considera “importantíssimo que as maternidades assegurem as condições de segurança necessárias para garantir que o acompanhante esteja presente no momento do parto”. Face a estas novas orientações, o hospital do concelho de Almada declara que “adoptará as normas e orientações da DGS, adaptando-as, como tem sido feito, aos espaços físicos existentes, sempre considerando a protecção e segurança de utentes e profissionais”.