Covid-19: Casos de reinfecção são raros mas lançam mais dúvidas sobre o vírus
O que se sabe até agora sobre as reinfecções pelo novo coronavírus SARS-CoV-2? A imunidade dura, afinal, quanto tempo depois de se ter sido infectado pelo vírus que causa a covid-19?
Os casos de reinfecção pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 são raros mas possíveis, confirmando-se actualmente cinco a nível mundial, e lançam um conjunto de dúvidas sobre o novo coronavírus e sobre a imunidade por exposição.
Segundo um estudo publicado esta segunda-feira na revista científica The Lancet Infectious Diseases, a exposição ao novo coronavírus pode não se traduzir em imunidade total garantida à doença covid-19 e os investigadores apontam a necessidade de análises adicionais dos casos de reinfecção. O que é então conhecido até ao momento sobre a reinfecção com SARS-CoV-2?
Quantos casos de reinfecção existem?
O estudo divulgado na revista confirma o primeiro caso de reinfecção pelo novo coronavírus nos Estados Unidos, o quinto em todo o mundo. O primeiro foi registado em Hong Kong a 24 de Agosto e os restantes na Bélgica, nos Países Baixos e Equador.
No entanto, investigadores na Coreia do Sul e em Israel já descreveram outros casos de reinfecção, o que resulta em menos de 20 possíveis reinfecções, em comparação com os mais de 37,5 milhões de casos de infecção pelo SARS-CoV-2 confirmados em todo o mundo. “Não significa que não haja mais”, alerta Mark Pandori, um dos autores da investigação publicada a revista The Lancet Infectious Diseases sobre o doente norte-americano.
Muitas pessoas infectadas não apresentam sintomas de covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus, o que dificulta o diagnóstico, e um dos cinco casos de reinfecção, o doente de Hong Kong, foi descoberto por acaso, através de um teste de triagem no aeroporto.
A confirmação de que se trata de uma reinfecção também implica uma análise genética das amostras retiradas de cada uma das infecções, para verificar se estão, ou não, em causa duas estripes diferentes do vírus, um procedimento difícil de implementar em larga escala.
Quais as consequências da reinfecção para os doentes?
As consequências de uma reinfecção variam de caso para caso, e se para os doentes dos Estados Unidos e do Equador a segunda infecção foi mais grave do que a primeira, nos restantes casos esse agravamento não se verificou.
Para os investigadores do estudo publicado na The Lancet Infectious Diseases, o facto de o doente de Hong Kong não ter desenvolvido sintomas na segunda infecção é uma boa notícia e um sinal de que o seu sistema imunitário aprendeu a defender-se após a primeira infecção.
Por outro lado, o doente dos Estados Unidos foi hospitalizado e recebeu oxigénio durante a segunda infecção, apesar de ter apresentado sintomas leves na primeira vez. “É preocupante”, afirmou a especialista em imunidade da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, Akiko Iwasaki, citada pela agência AFP num comentário à investigação.
Segundo os autores do artigo científico, uma hipótese para explicar o agravamento dos sintomas na segunda infecção é a possível exposição a uma inoculação muito grande do vírus na segunda vez, “o que teria causado uma reacção mais aguda”.
A explicação pode também passar pela exposição a uma estirpe mais virulenta do vírus ou pelo facto de a segunda infecção ter sido facilitada pela presença de anticorpos devido à primeira (uma possibilidade noutras doenças, como a febre de dengue).
Por outro lado, investigadores holandeses também acabaram de descrever o caso de uma mulher de 89 anos que morreu após uma reinfecção, ainda que a vítima sofresse de um cancro raro que enfraqueceu o seu sistema imunitário.
Quais as implicações na pandemia?
Os casos de reinfecção, ainda que raros, lançam dúvidas no debate sobre a imunidade contra o SARS-CoV-2 e sobre a duração dessa imunidade. As reinfecções identificadas nos Estados Unidos e em Hong Kong ocorreram num período relativamente curto: quatro meses e meio entre a primeira e a segunda infecção para o doente de Hong Kong e até 48 dias para o dos Estados Unidos.
“Os exemplos de outros coronavírus, responsáveis por gripes comuns e pela síndrome respiratória aguda grave (SARS) e a síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS), mostram que não há imunidade vitalícia”, afirmou recentemente uma especialista da Organização Mundial da Saúde, Maria van Kerkhove.
Já Mark Pandori alerta que as pessoas que já estiveram expostas ao novo coronavírus devem continuar a tomar precauções, incluindo o distanciamento físico, o uso de máscara e a higienização das mãos, uma vez que a possibilidade de reinfecção não está excluída.
Os investigadores também têm tentado perceber por que motivo algumas pessoas podem ser reinfectadas e um investigador do Instituto Nacional da Saúde e Investigação Médica francês, Frédéric Altare, ouvido pela AFP, explicou que estes casos têm sido muito estudados na tentativa de identificar um factor diferenciador que possam justificar a reinfecção.
Seja qual for o motivo, considera a investigadora Akiko Iwasaki, “as reinfecções mostram que não podemos contar com a imunidade adquirida através da infecção natural para alcançar a imunidade de grupo”, sublinhando que a estratégia é ineficaz e pode ser fatal para muitas pessoas.
Quem era a holandesa que morreu depois de uma reinfecção pelo SARS-CoV-2?
Os Países Baixos registaram a primeira morte no mundo de uma pessoa contagiada pela segunda vez pelo SARS-CoV-2, uma mulher holandesa de 89 anos, que também sofria de uma forma rara de cancro de medula óssea.
Segundo as explicações dadas esta terça-feira pela virologista holandesa Marion Koopmans, a doente precisou de ser internada na primeira vaga da pandemia do novo coronavírus, após desenvolver sintomas como febre alta e tosse forte, mas teve alta após cinco dias e teve dois testes negativos após o desaparecimento dos sintomas. A doente holandesa também sofria de uma doença conhecida como macroglobulinemia de Waldenström, uma forma rara de cancro de medula óssea, pelo que o seu sistema imunitário estava afectado há meses.
Dois meses após ter superado a covid-19, a mulher iniciou novas sessões de quimioterapia, mas começou a ter febre, tosse e falta de ar grave apenas dois dias depois do início do tratamento, por isso foi readmitida no hospital.
A doente foi submetida ao teste para detecção de material genético do novo coronavírus (pela técnica de PCR), que deu um resultado positivo. Fez também dois testes sorológicos – com resultados negativos – para detectar se ainda tinha anticorpos contra o vírus no sangue, na sequência da primeira vez que tinha sido infectada.
Oito dias depois de ter sido internada, a saúde da doente piorou bastante e morreu em duas semanas. “Seguramente, morreu de covid-19, mas também estava muito doente”, disse Marion Koopmans, que participa numa investigação sobre reinfecções realizada pela Universidade de Oxford, no Reino Unido.
A virologista holandesa destacou que hoje existem cerca de 25 casos conhecidos de reinfecções em todo o mundo e, na maioria dos casos, desenvolveram-se sintomas menos graves do que durante a primeira infecção.
Assim, os cientistas assumem que as reinfecções ainda são “excepções”, embora Marion Koopmans acredite que “haverá mais”. Para a virologista, “uma questão importante é saber se isso é algo típico da covid-19”, pois em muitos casos o segundo contágio ocorreu apenas dois meses após a primeira infecção.
Embora a investigadora espere que a maioria das pessoas que superou a primeira infecção pelo novo coronavírus esteja agora protegida “por mais tempo”, Marion Koopmans reconheceu que, em qualquer caso, “isso não durará uma vida inteira, porque isso nunca aconteceu com qualquer vírus respiratório”.
Ainda não está claro o que o conhecimento desses casos específicos pode significar para o desenvolvimento de uma vacina da covid-19, nem em que medida o sistema imunitário aprende o suficiente durante a primeira infecção pelo novo coronavírus, mas os anticorpos produzidos naturalmente após um contágio inicial parecem desaparecer com relativa rapidez em certos casos.
Quais são então as implicações das reinfecções para a criação de uma futura vacina?
“O facto de serem possíveis reinfecções pode significar que uma vacina não seria completamente protectora. Mas como o número de casos é minúsculo, isso não nos deve dissuadir de desenvolvê-las”, refere Brendan Wren, na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, citado pela organização britânica Science Media Centre (SMC).
Também a Aliança Global de Vacinação (Gavi) – para cujo conselho de administração foi nomeado o ex-primeiro-ministro português e ex-presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso – reconhece que a capacidade de desenvolver uma vacina eficaz contra a covid-19 é desconhecida. A posição da Gavi é a de que “mesmo considerando as incógnitas, a vacinação continua a ser o melhor meio de protecção [contra covid-19], mesmo que as vacinas não garantam imunidade vitalícia e que sejam necessários reforços”.